Cinema Pra Toda Gente
O projeto “Documentário Ruas da Discórdia”, dirigido e roteirizado pelo feirense Gean Almeida e produzido pela Mídia Preta Independente Raízes Preta, promove a discussão ao redor da representação dos nomes escolhidos para identificar espaços urbanos - como nomes de ruas - desdobrando seus impactos para a história social e política brasileira e seus reflexos na atualidade. A obra mergulha em dois cenários: Salvador, primeira capital do Brasil, e Feira de Santana, segunda maior cidade da Bahia; tendo como principais discussões a reformulação dos nomes das ruas que reforçam a permanência e o protagonismo de identidades racistas, patriarcais e oligárquicas. Para promover esse debate, o enredo é composto por convidados, que reúnem depoimentos de personagens sociais de Feira de Santana e Salvador, e pelas discussões sobre relações étnico-raciais, de gênero e classe, presentes na construção das duas cidades. Também é reforçado no documentário, a necessidade de substituir estes nomes para resgatar e valorizar toda a contribuição dos negros e negras , homenageando personalidades populares que fizeram parte da contrução desses locais e, assim, recuperar o sentimento de pertencimento de cultura.
Ao longo do filme é aproveitado elementos da cultura afro-baiana, animações e imagens que apoiam o entendimento do espaço urbano discutido. Comprometidos com a inclusão, a produção contou com recursos de audiodescrição (AD), Libras e Legendas para Surdos e Ensurdecidos (LSE), estimulando a universalização do acesso às obras audiovisuais e não limitando ou excluindo uma grande parte da população brasileira.
Diante dos principais temas abordados pela obra, é importante termos em mente que entender o passado histórico da cidade é fundamental para compreender de onde vêm tais políticas de exclusão. Para isso, os principais recortes temáticos para nos aprofundarmos na temática do filme estão organizados nos subtítulos a seguir:
Espaço Urbano e Seu Funcionamento
O espaço urbano reproduz e reflete a vida social, onde políticas hegemônicas públicas ou privadas criam processos que dominam e hierarquizam grupos sociais e, consequentemente, geram uma série de privilégios que ampliam a desigualdade nas cidades. No documentário, tal fato é mostrado quando a arquiteta e urbanista Gabriela Gaia expõe que o planejamento urbano desconsidera uma série de ruas, invisibilizando as identidades dos que vivem ali e muitas vezes criminalizando esses corpos.
Relação Entre História e Cultura da População Afrodescendente Nas Ruas Salvador
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Algumas personalidades que compunham o ambiente urbano.
(Neste tópico, será exibido o ambiente urbano de Salvador durante o século XVI ao século XX):
Irmandades: associações religiosas que se reúnem para promover cultos, instaladas nos meios urbanos de Salvador,tornaram-se ambientes ideais para o surgimento de uniões étnicas, culturais e políticas. Elas atuavam nas cidades dando amparo, quando escravizados recorriam à justiça pela sua liberdade através da alforria, intervinham por perdão às penas de morte e grandes castigos destinados aos africanos e afrodescendentes.
Associações de canto: forma de organização dos africanos e seus descendentes que consistia numa estrutura de poder, de sociabilidade e de ritualização, sobretudo masculina, que reforçava a identidade africana, religiosa e de classe profissional. O líder do grupo chamava-se capitão-de-canto e a associação cantava seus pontos aos ancestrais e orixás, como uma maneira de manter o ritmo de trabalho e aliviar a tristeza. Eles se concentravam em pontos estratégicos da cidade de Salvador, como: Canto da Calçada, Cais Dourado, Portão do São Bento, Lago da Vitória, entre outros.
Vendedoras Negras e Lavadeiras: As vendedoras negras tiveram seus pontos de venda em meados do ano de 1831. Segundo a Câmara Municipal de Salvador, elas estavam espalhadas pela cidade de Salvador em áreas de intensa movimentação do comércio. Já as lavadeiras, que atuavam desde o século XVI, lavavam roupas na beira de rios e lagoas que contornavam as cidades da Bahia. Suas práticas se relacionam à Oxum, orixá das águas, numa demonstração da relação com o meio ambiente e a natureza.
- Importância da Religião para a Organização Espacial dos Africanos e Afrodescendentes nas Cidades:
Como visto, a maioria dos papéis sociais citados, anteriormente, reproduzem práticas religiosas. Nesse contexto, pode-se observar a importância da religião para a manutenção do papel social e organização da população negra na cidade de Salvador, estes que assumem a religião como parte fundamental dos lugares que ocupam. Tal fato é evidenciado no documentário quando UH! Neto, educador social, diz que "rua é caminho, e caminho, é Exú”.
Mito Da Democracia Racial, Políticas Higienistas e o Capitalismo Como Modelo Que Mantém as Desigualdades Nas Cidades
O ‘mito da democracia racial’ foi difundido a partir de leituras de Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala”, que ampliou uma visão positivista das relações do cotidiano entre etnias como se estas não fossem conflituosas. Elas foram absorvidas pelas elites acadêmicas, e também foram base para o projeto político,racista do país, de embranquecimento da população,implementado pela Era Vargas. Vale notar, que um dos nomes homenageados nas ruas de Salvador é Vargas, uma figura patriarcal, racista e que atendia aos interesses da elite branca, longe de representar de fato o povo que construiu a história cultural e que habita as ruas de Salvador e Feira de Santana.
Logo após a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, houve uma tentativa de desafricanização do Brasil. O discurso das doutrinas positivistas ganharam força, políticas higienistas surgiram, como por exemplo o Bota-Abaixo, exercida pelo prefeito Pereira Passos (RJ, 1902-1906). Essas políticas possuíam um discurso de modernização e de combate aos hábitos associados às populações pobres que viviam em locais insalubres e que poderiam promover doenças. No entanto, era escondido o caráter de exclusão e não assistência do Governo à população marginalizada e, também, o projeto de expulsão da população negra como forma de branquear os centros urbanos.
Tal política fez com que boa parte da população, em sua maioria negra, se dirigisse aos morros e subúrbios da cidade, dificultando ou impedindo a sua inserção e permanência nos mercados de trabalho. Ainda que os anos tenham passado, tais políticas racistas e segregacionistas se estendem até hoje por meio do sistema capitalista, no qual estamos ideologicamente inseridos, uma vez que ele é baseado no lucro e na exploração da força de trabalho. Desse modo, quando há investimento social, ele é feito de maneira mínima para manter o controle das populações exploradas e excluídas, sendo sempre articulados em favor dos interesses da elite composta.
Assim, o coletivo Terra Preta diz que: “Embranquecer a cidade significa repovoá-la com o tanto de coisas que foram sequestradas dela, como se não fosse digno, relevante, próprio ou real. A cidade é discursiva e politicamente construída por determinados setores agentes e sujeitos como uma ficção pequena, incompleta e que por muitas vezes aparta, minimiza, subjuga e demoniza aquilo que assegura que a vida não se acabe”, concluindo, é preciso refletir sobre quais nomes e culturas são apagados para que se tenham representações da colonização européia.
- Coletivo formado por pesquisadores, artistas, produtores culturais negros que tem como objetivo compartilhar narrativas afrodiaspóricas, através da criação de uma mídia antirracista (raízes TV). O canal no Youtube tem como objetivo utilizar o audiovisual como uma arma política, que potencialize e viabilize as formas de resistência, existência e ativismo dos mais novos aos mais velhos presentes no Estado da Bahia.
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Patriarcais: Relações sociopolíticas que colocam o homem como sendo o detentor das relações de poder em uma sociedade. Vale lembrar que as sociedades patriarcais encaram o gênero masculino cisnormativo e a heterossexualidade com superiores em relação a outros gêneros e sexualidades.
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Oligárquicas: Dentro das ciências sociais as relações oligárquicas são consideradas formas de concentração de poder político por poucos, podendo ser uma família, partido político, grupo econômico ou grandes empresas.
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Políticas hegemônicas: são políticas que favorecem um determinado grupo sobre a maioria dentro de uma sociedade. Desse modo, as políticas hegemônicas atendem o grupo da elite do país em detrimento da maior parte da população, subjugando, principalmente, as minorias sociais e perpetuando privilégios econômicos.
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AMS, Livro de Posturas, vol 5., Postura Nº.57 (apud SOARES, 1996)
Referências bibliográficas
RAMOS, MARIA ESTELA. Território afrodescendente: leitura de cidade através do bairro da Liberdade, Salvador (Bahia) http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/11986
Coletivo “Terra Preta Cidade” no podcast: Des-embranquecendo a cidade.https://sites.google.com/view/terrapretacidade/in%C3%ADcio?authuser=2
https://www.ebiografia.com/gilberto_freyre/
Link do documentário: https://www.youtube.com/watch?v=TJ4A_7F77Ug
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