Francisca Luiz: A Mulher Negra Condenada por Lesbianismo

Por muitas vezes a história é contada sem considerar a participação das mulheres em sua  construção. Ao se falar do Brasil e da sociedade brasileira, as narrativas dos livros de história desconsideram a contribuição e os eventos de protagonismo de pessoas negras e indígenas na consolidação política do nosso país. A dificuldade de incluir essas minorias étnicas é percebida mesmo na tentativa de recontar o passado, um exemplo disso é o esforço que tem sido feito para popularizar a luta do movimento LGBTQIAPN+ e a atuação dessa comunidade nos mais diversos espaços e momentos históricos.

Aqui, apesar dos avanços para elaborar novos escritos , a presença das mulheres e, principalmente, das mulheres negras, prevalece esquecida. Nesse sentido, para contribuir com o resgate de protagonistas negras, o presente texto propõe contar a história de Francisca Luiz, mulher negra condenada pela inquisição, no Brasil, por lesbianismo.

Figura 1 - Capa do Podcast o Crime de Francisca

Fonte: História Preta. O Crime de Francisca. 

Francisca Luiz nasceu em 1550, em Portugal, na região do Porto. Filha de Diogo Luiz, um homem escravizado pelo chantre do Porto — um membro do corpo da Igreja. Francisca era forra, ou seja, era uma negra liberta. Foi casada com Domingo Soares, que a abandonou. Vivendo sozinha, por volta de 1578, Francisca conheceu Maria Álavares, uma mulher solteira, costureira e artesã. As duas passaram a morar juntas, o que chamou as atenções da sociedade. Para fugir dos julgamentos que as enquadravam como criminosas, Francisca saiu de Portugal, não se sabe ao certo se ela fugiu ou foi expulsa, mas foi neste momento que nossa protagonista veio para cá.

Por volta de 1579, Francisca desembarcou em Salvador. Nessa época, fazia apenas 30 anos que os primeiros navios negreiros chegaram no Brasil, a escravização era recente e Salvador ainda não tinha uma presença forte da população negra. A cidade que foi fundada em 1549, possuía poucas ruas e poucos mil habitantes. Francisca chegou sozinha, sendo uma mulher negra e liberta no Brasil que veio a ser o maior importador de escravos africanos. De certo, sua vida nas terras brasileiras não seria fácil. Não fazia muito tempo de sua chegada, quando conheceu Isabel Antônia, uma portuguesa, também natural do Porto, que vivia sozinha em Salvador e era conhecida como “a do veludo”. Isabel Antônia foi condenada e expulsa de Portugal pelo crime de pecado nefando com outras mulheres. Muito amigas, as duas viveram juntas por alguns meses.

Figura 2 - Cidade de Salvador.

Fonte: Conhecimento Científico.

< https://conhecimentocientifico.r7.com/primeira-capital-do-brasil/>

Em 1591, pela primeira vez no Brasil, foi instalado o Tribunal do Santo Ofício, um tribunal itinerante, igualmente conhecido como Tribunal da Inquisição, ou seja, que julgava e punia crimes e heresias, comportamentos contrários aos ensinamentos da Igreja Católica. A abertura do Tribunal em Salvador instaurou uma atmosfera de terror, as pessoas se sentiram amedrontadas e no dever de denunciar qualquer crime que tivessem conhecimento.

O juiz inquisidor era Heitor Furtado de Mendonça, e durante a visitação do Santo Ofício deteve mulheres pela prática de sodomia. Sodomia ou “abominável pecado nefando”, na Idade Média[1], se referia a excessos na vida sexual, a partir do século XIII, passou a se referir à existência de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Dentre as mulheres detidas estavam Maria de Lucena, de 25 anos, que ao ser denunciada por dormir carnalmente com escravizadas, corajosamente afirmou que fazia amor com outras mulheres por gosto e não por falta de homens.

Figura 3 - "Auto de Fé presidido por Santo Domingo de Guzmán", do espanhol Pedro Berruguete pintada por volta de 1495.

Foto: Pedro Berruguete/Museu do Prado. Fonte: G1.

Outro caso, talvez o mais conhecido, foi o de Felipa de Souza, de 35 anos, costureira, que foi denunciada por sua amante, Paula de Sequeira. Diante da denúncia, Felipa assumiu com orgulho seus relacionamentos com mulheres e, por isso, foi condenada a penitências espirituais, açoitada publicamente e expulsa da Bahia. Felipa ficou conhecida como a única que sentiu na pele a pena por amar outras mulheres.

Nesse contexto de inquisição, Francisca Luiz e Isabel Antônia, morando juntas, começaram a se envolver sexual e romanticamente. Apaixonadas, viveram um romance intenso com discussões frequentes, que, supostamente, eram motivadas pelos ciúmes de Francisca. Uma dessas brigas foi testemunhada por Isabel da Fonseca, uma criança, em 1584. Anos depois, diante da visita do Tribunal do Santo Ofício, Isabel da Fonseca, aos seus 17 anos, foi ao encontro do juiz Heitor Furtado de Mendonça para denunciar o que havia visto anteriormente.

25 de janeiro de 1592 foi o dia em que Francisca Luiz foi denunciada e meses depois foi chamada para confessar “todas as suas culpas” ao tribunal. Francisca confessou que se relacionou com Isabel Antônia há treze anos e, por isso, em 8 de agosto de 1593, foi sentenciada a pagar dez cruzados e as penitências espirituais de confessar-se e jejuar. Francisca não foi condenada à expulsão pelo fato de Isabel Antônia ter falecido em 1591, antes da instalação do Tribunal do Santo Ofício em Salvador.

Figura 4 - Denúncia contra Francisca Luiz.

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo – PT.

Apesar das histórias de Francisca Luiz, Felipa de Souza e Maria de Lucena, a inquisição não insistiu na perseguição da sadomia feminina, por considerarem que as mulheres eram mais discretas em suas relações homoeróticas, raramente flagradas. Além disso, havia um considerável  desinteresse e desprezo pelas mulheres, seus corpos e seus desejos. Para o historiador Ronaldo Vainfas:

“A sexualidade feminina registrada nos documentos da Inquisição afigurasse imperceptível, quase opaca. As descrições dos atos sexuais neles contidos trazem uma forte marca de jargões e fórmulas inquisitoriais do tipo “beijos e abraços” ou “ficava uma sobre a outra, como se fosse macho sobre fêmea” – e nesta última fórmula percebe-se com nitidez a projeção do modelo de cópula heterossexual julgado natural pelos teólogos.” (VAINFAS, 2004. p. 113).

Figura 5 - Fotografia de 1880.

Fonte: Mega Curioso. <https://www.megacurioso.com.br/estilo-de-vida/105443-amor-lesbico-23-fotos-que-mostram-casais-de-mulheres-ao-longo-dos-anos.htm?img-7>

A postura orgulhosa e corajosa dessas mulheres em torno de afirmarem a existência do amor e de relações sexuais entre mulheres, apresenta à sociedade quinhentista uma verdade que até hoje é, para muitos, indigesta. Sabemos que a sexualidade feminina ainda é um tabu, um assunto a ser evitado, resultado do esforço em manter o prazer das mulheres vinculado às narrativas sexuais dos homens, portanto, olhar para as histórias protagonizadas por mulheres é necessário para a construção desse protagonismo nos dias de hoje.

 

Nota de rodapé

[1] Idade Média é o nome dado ao período da história entre os anos 476 e 1453.

 

Referências bibliográficas

História Preta. O Crime de Francisca. [Podcast]. 2023. Disponível em: <https://historiapreta.com.br/episodio/o-crime-de-francisca-1-o-segredo>. Acesso em: 20 de abril de 2024.

LAURIANO, J., SCHWARCZ, L. Enciclopédia negra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

REIS, J.J. A presença negra: encontros e conflitos. In:  INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro, 2000. Disponível em: < https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros#:~:text=Presen%C3%A7a%20negra,%C3%A9%20exatamente%20para%20ser%20comemorada>. Acesso em: 20 de abril de 2024.

SOUZA, Maria Clara. Denúncia contra Francisca Luís, 1592. Edição digital, 2021. Disponível em: <http://map.prp.usp.br/Corpus/FL/FL.html#840>. Acesso em: 20 de abril de 2024.

VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofício. In: Mary del Priori, organizadora. História das mulheres no Brasil, p. 115-140. São Paulo: Editora da Unesp, 2004. Disponível em: <https://democraciadireitoegenero.wordpress.com/wp-content/uploads/2016/07/del-priore-histc3b3ria-das-mulheres-no-brasil.pdf>. Acesso em: 20 de abril de 2024

VEIGA, Edison. Quem foi Felipa de Sousa, processada por lesbianismo pela Inquisição e hoje ícone do movimento LGBT. BBC News Brasil, De Bled (Eslovênia), 27 junho 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53165643>. Acesso em: 20 de abril de 2024.

Qual é a sua reação?

like

dislike

love

funny

angry

sad

wow