Conhecendo Lygia Pape - Arte e Espaço

* O texto abaixo compõe a pesquisa científica “As Interfaces de Lygia Pape: A arte e o design através do espaço” (2023) e foi cedido pela autora para compor a nova edição da Revista Pra Toda Gente.

 

Os primeiros contatos de Lygia Pape com a arte

Lygia Carvalho Pape nasceu no município de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, em 1927. Durante sua infância, chegou a morar em Niterói e, posteriormente, na cidade do Rio de Janeiro, onde passou pelos bairros: Rio Comprido, Humaitá e Jardim Botânico, junto de seus pais Adhemar Carvalho e Maria José Torres de Carvalho. Seu pai possuía um fascínio por aves e, assim, pelos corredores da casa da família Carvalho, transitavam diversas espécies criadas por ele.

O gosto pelo canto lírico era fomentado por seu pai e seu tio, que adoravam ouvir e cantar ópera, e incentivaram Lygia a frequentar aulas de canto e piano. Diante desse cenário, consumindo de perto a beleza da diversidade de cores e formas, cultivadas nos pássaros e na musicalidade, sua relação com a arte sempre esteve presente, neste primeiro momento, de forma mais espontânea, sem compromissos intelectuais, apenas a pura admiração das linguagens artísticas manifestadas ao seu redor.

Aos 22 anos, Lygia casou-se com Gunther Pape, um químico de descendência alemã, nascido em Blumenau, Santa Catarina. Por conta das diversas transferências que o trabalho do seu marido proporcionou, o casal se mudava de regiões de tempos em tempos, promovendo um contato cada vez mais intenso entre a arte e a própria Lygia. Seu primeiro forte sentimento de aproximação com as artes plásticas ocorreu em Arraial do Cabo.

“Fiquei muito tempo por lá, sem nada para fazer. À tarde,  costumava subir as dunas brancas, que pareciam um quadro de Malevich, de onde surgia, de repente, mergulhado na massa branca das dunas, aquele sol com um círculo vermelho. Visualmente, aquilo era uma maravilha. Foi ali que comecei a ter vontade de fazer alguma coisa em artes plásticas.” (PAPE, 1998, p.9)

Após a estadia em Arraial do Cabo, o casal se mudou para Petrópolis, onde ela se aproximou, por intermédio de Décio Vieira (1922-1988), a um grupo de estudantes que se reuniam em frente ao Palácio Cristal para desenvolver seus desenhos com auxílio de um professor que concebia aulas de modelo vivo com um caráter mais tradicional[1], porém mantinha o espaço livre para que os alunos explorassem suas habilidades.

De volta a cidade do Rio de Janeiro, em 1952, iniciou sua profissionalização no campo da arte no mesmo momento em que estabeleceu uma comunicação com Ivan Serpa (1923-1973) e, logo, começaram a se reunir, nos pilotis do prédio do Ministério de Educação e Cultura (MEC) e na casa de Serpa, com outras pessoas que tinham interesses próximos, a fim de discutir questões ligadas à arte. Porém, o principal ponto de encontro desses artistas era o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) que “[...] tinha como proposta ser um espaço dinâmico, com cursos de formação artística e aberto a áreas como a música, o cinema, a dança, o design e o teatro.” (MATTAR, 2003, p. 22).

 

Obra e espaço

Independentemente do foco voltado para a construção simplificada das formas geométricas que, tanto Lygia Pape quanto Décio Vieira e Ivan Serpa possuíam, este grupo de artistas, no início de sua formação, trabalhavam de maneira mais intuitiva e desprendida de conceitos teóricos. Conforme a tomada de consciência do que pretendiam desenvolver, ficava cada vez mais claro e, em 1953, foi criado o Grupo Frente, no qual “eram influenciados pelas propostas de Max Bill[2] e do Ruptura[3]” (MATTAR, 2003, p.27), ambos frutos do movimento artístico concreto que nasceu atrelado às transformações tecnológicas na área da indústria, iniciado primeiramente na Europa e posteriormente percorreu o mundo até chegar na América Latina. Especificamente no Brasil, vinculou-se à figura de Juscelino Kubitschek e o seu programa de Planos de Metas, que visava o progresso da infraestrutura do país, e a inauguração de Brasília, em 1961, como símbolo da mudança e do futuro, impulsionando os artistas a trabalharem em uma jornada voltada ao novo.

O Grupo Frente surgiu para representar a arte concreta do Rio de Janeiro, assim como o Grupo Ruptura em São Paulo, porém trazia um olhar à frente do que estava sendo feito. Após a “I Exposição Nacional de Arte Concreta”, ocorrida em 1956 no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), as diferenças interpretativas de ordem teórica e prática sobre a arte concreta internacional entre os dois núcleos ficaram mais evidentes, pois enquanto os paulistas aplicavam de forma rigorosa sobre suas práticas artísticas os “problemas teóricos do Concretismo desenvolvido por Max Bill e pela escola de Ulm, na Alemanha [...]” (COCHIARALE, 1987, p.16), os cariocas se mantinham de maneira mais livre, zelando pela experiência prática e rebatendo a perda da autonomia artística por decorrência de um racionalismo exacerbado.

Lygia Pape se integrou, definitivamente, ao Grupo Frente em 1954, estando ao lado de artistas como Lygia Clark (1920-1988), Ivan Serpa, Hélio Oiticica (1937-1980) e Franz Weissmann (1911-2005). Neste momento, Lygia desenvolveu um grande interesse no filósofo presocrático Heráclito de Éfeso, que se firmou na ideia da constante impermanência de tudo que está à nossa volta e até em nós mesmos, deixando claro que a mudança é o único elemento permanente. “Segundo ele, nada permanece imóvel e nada permanece em estado de fixidez e estabilidade, mas tudo se move, tudo muda, tudo se transforma, sem cessar e sem exceção tudo flui.” (MATTAR,2003, p. 17). Essa base teórica é bastante significativa para compreender a forma dela de pensar, como uma artista que nunca se contentou em fazer mais do mesmo, que aproveitava da sua inquietude como ferramenta de exploração e que sempre utilizou em suas criações o mundo ao seu redor e as novas descobertas.

Uma das questões debatidas entre os artistas do Grupo Frente e que se prolongou até o Neoconcretismo, é a integração do espaço com a obra, a fim de que o fundo não se restringisse aos limites do suporte, quebrando a divisão entre o espaço da criação artística e o espaço real. Junta-se, assim, arte e mundo. Neste período, Lygia Pape explorou o dinamismo da produção e do espaço, através de diversos suportes em busca da síntese narrativa e da linguagem universal.

Em “Jogos Vetoriais” (1954-56), por meio de um jogo geométrico, Lygia explora essa integração a partir do momento em que pinta o fundo de branco, misturando a obra com a cor da parede do espaço. O conceito se escalona em “Jogos Matemáticos” (1954-56), quando o questionamento da bidimensionalidade da tela e as noções de profundidade ganham foco.

Neste sentido, é desenvolvido relevos geométricos ordenados e bem estruturados que quebram a ligação do artista com a obra, a medida em que ela incorpora em sua estrutura uma construção mecanizada, como se a ela tivesse sido feita por uma máquina. Sua sequência ritmada de relevos geométricos, juntamente com as bordas pintadas com cores que se destacam em meio ao branco, criam uma sensação de continuidade, como se fosse uma proeminência das paredes do espaço, aglutinando-os e fazendo parte um do outro.

 

Fig. 1 -  “Jogos Vetoriais” (s/d).      Fig. 2 “Jogos Matemáticos” (s/d).

   

Fontes: Arte Miami Magazine.

1 - Disponível em: https://artmiamimagazine.com/lygia-pape/. Acesso em: mai. de 2023.

2 -  Disponível em: https://artmiamimagazine.com/lygia-pape/. Aceso em: mai. de 2023.

 

O ápice da ocupação da obra no espaço se deu em seus “Balés Neoconcretos”. Estas produções consistem na corporização dos poemas neoconcretos através de formas geométricas que, libertas dos seus suportes, se movimentavam pelo espaço, trazendo “uma experiência que reunia luz, som, cores e movimento, de forma especialmente bem concebida.” (MATTAR, 2003, p.36).

Em “Balé Neoconcreto I” (1958) a intenção de Lygia era “captar o motor do corpo, aquela possibilidade de se deslocar no espaço sem a presença da figura humana, isto é, apenas a captação do movimento que o corpo é capaz de realizar.” (PAPE, 2003, p.66); movimentando formas pelo espaço e quebrando totalmente qualquer limite sobre elas. Já em “Balé Neoconcreto II” (1959), a movimentação entre as formas acabou por explorar a ambivalência entre figura e fundo quando “durante a apresentação, ocorreu um momento especial, quando a placa rosa começou a recuar, de encontro ao fundo infinito negro, e de repente você tinha a impressão de que o rosa, que era matéria, se transformava no espaço, com o negro passando a ser forma” (PAPE, 2003, p.67).

Fig. 3 - “Balé Neoconcreto I” (1958).      Fig. 4 - “Balé Neoconcreto II” (1959).

           

        Fonte: Itaú Cultural.                   Fonte: Comunicação e Artes

3 - Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra24694/bale-neoconcreto-i. Acesso em: mai. de 2023.

4 -  Disponível em: https://comunicacaoeartes20122.wordpress.com/2013/01/24/neoconcretismo/. Acesso em: mai. de 2023.

 

O Grupo Frente se tornou base para a formação do movimento artístico Neoconcreto que surgiu no final dos anos 50 no Rio de Janeiro, marcando a arte vanguardista do Brasil. As produções ligadas à esta vanguarda já estavam sendo realizadas por nomes emblemáticos da arte não figurativa brasileira, mas, somente em 1959, na “I Exposição Neoconcreta" ocorrida no MAM-RJ, o Manifesto Neoconcreto foi assinado por Amílcar de Castro (1920-2002), Claudio Mello e Souza (1935-2011), Ferreira Gullar (1930-2016), Franz Weissman, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim (1926-2011) e Theon Spanúdis (1915-1986).

Em seu manifesto, os neoconcretas se posicionam criticamente ao teor mecânico e racionalista restrito às produções concretas em uma narrativa progressista da história da arte do construtivismo, no qual o interesse pela positividade e pela ciência está presente em sua essência; dessa forma, são explorados os limites da tradição construtivista, negando-a e transmitindo sua natureza contraditória ao denunciar estas ideologias que ignoram a questão do subdesenvolvimento brasileiro. Além disso, eles defendem uma arte geométrica racionalista e adentram nessa característica através de referências como Kazimir Malevitch (1879-1935), Piet Mondrian (1872-1944) e Nikolaus Pevsner (1902-1983).

Ferreira Gullar afirma:

“O ponto extremo dessa tendência encontra-se no grupo paulista, para qual as noções de tempo, espaço, estrutura, na arte, são as mesmas que na ciência. Os neoconcretos negam essa identidade que a seu ver, rouba à arte a categoria de meio de conhecimento a linguagem criativa independente. Para os neoconcretos a obra de arte é um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos’ e que ‘só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica.” (GULLAR, 1997, p.111)

 

Notas de rodapé

[1] Décio Vieira já demonstrava seus interesses vinculados às formas geométricas e um descontentamento com a arte tradicional

[2] Max Bill (1908-1994), arquiteto e artista suíço, estudante da Bauhaus e fundador da Hochschule für Gestaltung Ulm, Escola Superior da Forma em Ulm. Foi uma grande influência para a arte concreta no Brasil após a sua exposição individual no MASP em 1950 e, principalmente, pela sua participação na I Bienal de São Paulo em 1951.

[3] Grupo formado em 1952 por artistas como Lothar Charo, Leopoldo Haar, Geraldo de Barros, Anatol Wladyslaw, Luiz Sacilotto e Kazmer Féjer, liderados por Waldemar Cordeiro. No mesmo ano de sua formação, realizam sua primeira exposição que se torna um marco para o concretismo no Brasil.

 

Referências bibliográficas 

AMARAL, Aracy. Projeto construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: MAM, São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1997.

ARAÚJO, Leonardo. Os Espaços Imantados - a edição brasileira e um possível “corpo coletivo”. Ateliê 397, 2012. Disponível em: https://atelie397.com/os-espacos-imantados-edicao-brasileira-e-um-possivel-corpo-coletivo/. Acesso em: 23 de abr. de 2023.

BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Cosac & Naify, 1999. Espaço da arte brasileira.

COCCHIARALE, Fernando; GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos cinquenta. Comentário Waldemar Cordeiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1987. Temas e debates, 5. 

COCCHIARALE, Fernando. Entre o olho e o espírito. Lygia Pape. Disponível em: https://lygiapape.com/artista/. Acesso em: 30 de  nov. de 2023.

MATTAR, Denise. Lygia Pape - Intrinsecamente Anarquista. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2003

PAPE, Lygia. Lygia Pape - Entrevista a Lúcia Carneiro e Ileana Pradilla. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. Coleção Palavra do artista

RODRIGUES, Viviane. Neoconcretismo e design: A programação visual de Lygia Pape para o Cinema Novo, na década de 1960. 2009. Dissertação (Mestrado em Design) - PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2009.  [1]

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