Mulher como produtora de cultura: um relato pessoal de transfiguração de propósito

Certeza para mim nunca foi apenas uma, eu já carreguei muitas comigo. Nasciam em uma sementinha de sentimento, e eu as plantava, regava e nutria até que suas raízes me afugentassem. Algumas certezas sufocavam durante o processo, em meio a novas que eram cultivadas perto demais, outras se tornavam tão reais que abandonavam o solo fértil do mundo das ideias e passavam a florescer no mundo sensível de Platão.

De uma reconstrução familiar, o curso fluvial inesperado da vida me levou do norte ao nordeste do país, quando ainda era uma criança, e ali cresci com minhas certezas, pequenas mudas e raízes remanescentes que tentavam entender o novo ambiente e suas possibilidades, se adaptando, criando espinhos ou apenas morrendo e dando lugar a outras. Há muito tempo carrego comigo aquilo que chamo de “A certeza da filha mais velha”, que vejo agora ser um fator crucial para as escolhas que me trouxeram a construção deste ensaio. Dentro dessa certeza reside a responsabilidade de me tornar exemplo e “pavimentar” o caminho para quem veio depois de mim (minhas irmãs). Ademais, ser mulher também carregava a imposição cultural de cumprir o papel social de servir e obedecer, que até hoje ditam, mesmo que indiretamente, certas escolhas feitas na minha vida.

A minha história começa durante a realidade pandêmica de 2020, enquanto tentava conciliar os estudos para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), um estágio dentro de equipamentos de saúde e um projeto de conclusão do curso técnico de enfermagem, descobri o Design como profissão. O gosto pelas artes visuais e desenho me acompanhavam desde pequena, a famosa chamada “artista da sala”, então, quando soube que existia curso de graduação nessa área e um mercado de trabalho, a curiosidade me fez estudar mais a fundo essa carreira que, até então, me causava intriga, mesmo sem nunca ter ouvido falar.

Em 2021, a semente de certeza germinou timidamente quando a nota do ENEM apareceu, uma esperança surgiu em meio ao caos de ansiedade. Essa esperança eu não ousava negociar. Então, a colocação para as duas vagas nas Universidades que eu havia aplicado foram reveladas. Eu havia passado em ambas e iria estudar Design! Mas, rios calmos não significam rios seguros, e a felicidade de outrora se extinguiu como inundação que afoga palha queimando, assim que eu soube que iria me mudar para outro estado.

Na mesma época em que passei no SISU, meu pai recebeu uma proposta de trabalho irrecusável para Belo Horizonte, o que impossibilitou a minha matrícula nas duas Universidades. No momento, senti que meu chão havia sido arrancado de mim. Foi com coração trêmulo que comecei a buscar por bolsas integrais pelo ProUni, na grande “Beagá”. Achei uma única vaga, em um centro universitário, do qual nunca tinha visto em minhas pesquisas enquanto procurava pelos cursos de Design no Brasil, e me candidatei. Quando soube que havia conseguido o sentimento que perdurou foi agridoce e eu me vi, mais uma vez, navegando em afluentes completamente desconhecidos, colocando o novedio da certeza da minha profissão em uma redoma de vidro e torcendo silenciosamente para que essa escolha vingasse.

No entanto, unido a esta esperança estava um sentimento que havia se tornado um velho amigo, o receio. Ele não residia no material, mas no intangível. Foram nos pequenos costumes, no sotaque meio interiorano, na gírias regionais e no frio inconcebível de doze graus que arrefeceu meu coração acalorado meio nortista e meio nordestino, que o receio de ser uma completa estranha àquela cultura começou a crescer. Uma década vivendo no Ceará, tendo as feições tipicamente nortistas/indígenas, me mostrou que eu era vista como “estranha” para o resto do Brasil. Todavia, ao me mudar e viver em Belo Horizonte me deparei com uma receptividade comunitária sem precedentes em toda minha vivência.

Ademais, durante dois anos da minha graduação, uma visão mercadológica foi sendo implantada no modo de ver o futuro, mesmo que sem querer, cresciam ervas daninhas que iam consumindo os nutrientes do trabalho árduo que eu colocava no crescimento do tão almejado sonho, chamadas perfeição. Acredito hoje, este ser o ponto comum mais doloroso da existência como mulher, a necessidade da perfeição, mesmo que completamente impraticável, em toda e qualquer área da vida. Como ser perfeito se o próprio “ser” é uma vivência dotada de erros e acertos, pois deles nascem a individualidade?

A perfeição me levou ao cansaço extremo, à crises de identidade, noites em claro fazendo e refazendo trabalhos em meio a lágrimas. Foi apenas buscando nas minhas vivências, minha origem, minha criação, meu apego pela minha própria história, que havia sido deixado de lado por uma meta capitalista, que encontrei um novo propósito na minha carreira, a área de pesquisa. O rio da vida iria me desaguar de volta à minha nascente e me fazer replantar a certeza daquele que seria o caminho a seguir na minha profissão.

Na redescoberta da minha própria história uma questão saltou à minha mente: “Qual o meu papel na produção de cultura?”. Como mulher nortista, criada no Ceará, estar dentro deste contexto multi-regional me despertou para uma realização que estava diante dos meus olhos, todos somos seres produtores de cultura, em cada fala, gesto e ação o ser humano cria cultura. Era intrínseco a mim produzir trabalhos, seja na faculdade ou no mercado, que tinham características relacionadas às regiões dentro do meu ser e por isso mergulhei na área da pesquisa no Design. Porém, ao procurar por exemplos de figuras femininas nessa área, me deparava com um incômodo constante, a visão da mulher como musa e nunca como artista, fonte de inspiração mas jamais a produtora do valor. Por que?

O intuito deste ensaio se encontra neste questionamento. A minha caminhada me trouxe ao momento em que me encontro agora, de bater de frente com a realidade crua do “ser” produtor de cultura. Por que levou uma vida de encontros e desencontros para que eu me entendesse como artista e não como musa? Onde a visão patriarcal capitalista foi tão forte que me fez fugir do meu curso natural e ir atrás de um sonho mercadológico? A análise da minha vivência me dá indícios, mas para que haja mudança no papel da mulher como produtora de cultura, faz-se necessário tomar a rebeldia da pergunta e expô-la. Apenas uma fagulha de dúvida pode queimar certezas arraigadas e transformá-las em fogaréu de revolução.

Figura 1 - “O colorido das emoções que nos constroem” (2023).

Fonte: elaborado pela autora.

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