Amor&Sexo 24/7

O especial “Inside” (2020) produzido pelo comediante Bo Burnham pode ter chegado até seus ouvidos pelos hits “Bezos I” (2021) e “Welcome To The Internet” [Bem-Vindo à Internet] (2021), que viralizaram no TikTok alguns meses depois do lançamento do filme. O longa é uma reflexão  acerca da pandemia e suas consequências mais diretas no cotidiano da população, um documento histórico que merece ser discutido como um todo, porém, em um outro momento. Para o ensaio a seguir, será destacado  apenas um dos vários fios desse emaranhado de ideias: o do desejo sexual na era digital. 

“Sexting” (2021) é uma canção apresentada no musical como uma piada referente à prática de mesmo nome que consiste na troca de mensagens de texto eróticas e que podem ou não evoluir para uma troca de imagens entre os participantes, como é o caso da canção de Burnham, que termina com um nude[1] não correspondido pelo eu lírico[2]. A pandemia colocou barreiras sanitárias no universo dos relacionamentos e da intimidade. O toque se tornou mais raro e, por vezes, o mundo digital supriu (ou ao menos tentou suprir) essas ausências. A Revista Forbes, citando uma pesquisa do americano Pew Research Center, afirmou na metade de 2021 que, dependendo da região do Brasil (como é o caso dos grandes centros urbanos), o aumento do uso de aplicativos de relacionamento cresceu em 400% durante esse período. 

Por mais que esse discurso seja batido, se tornando até mesmo um senso comum, vale relembrar: a pandemia acentuou traços da pós-modernidade que não pretendem sair de vista tão cedo. Da mesma maneira, a forma de amar e transar depois do evento também se alterou permanentemente. Não é possível achar um caminho único na trilha desse fenômeno, pois cada sujeito encontrou as suas próprias válvulas de escape. Contudo, o neoliberalismo e a ideia de “sociedade pornográfica” - categoria descrita pelo filósofo Byung-Chul Han no livro “Sociedade da Transparência” (2017) - podem contribuir para entender o fenômeno dos afetos enquanto fato social, permeado pelos “ruídos digitais”. 

 

Bo Burnham cantando “Sexting” em seu musical “Inside” / Fonte: YouTube

 

Um caminho intuitivo após essas leituras é pensar no amor e no sexo como elementos integrantes de uma “sociedade da positividade” (HAN, 2017), na qual não há espaço para a lacuna, o erro, ou então, a “brochada”. O termo aqui não é usado à toa. Segundo uma matéria de 2018 da Revista Trip, dados da Sociedade Brasileira de Urologia apontam o uso de remédios estimulantes, como o Viagra[3], em homens cada vez mais jovens. Fruto de uma imagem de masculinidade reforçada através da indústria pornográfica, diversos adolescentes começaram a fazer uso desse medicamento muito cedo, chegando a assumir o comportamento de vício nos anos seguintes. Na matéria da Trip, muitos afirmam omitir das parceiras o uso das pílulas, procurando legitimar a falsa imagem de seu “vigor masculino”.

O momento histórico do capitalismo reflete esse sentimento de urgência nos relacionamentos. O desempenho de cada indivíduo no mundo do trabalho passou a ser determinado não mais por um chefe, mas sim por ele próprio. A auto-exploração tornou-se a forma silenciosa com que a classe dominante[4] controla as massas trabalhadoras de forma ainda mais efetiva em comparação com o capitalismo industrial. Essa falsa liberdade cria uma situação paradoxal, na qual o trabalhador acredita ter mais escolhas que antes, mas na realidade está entregando sua existência na forma de dados pessoais, que são estruturais para o capitalismo tardio que se consolida no presente. 

Em relação ao prazer sexual e à realização afetiva, também não é diferente. No primeiro dos casos, a perpetuação de uma imagem desprovida de mistério torna o sexo algo gradativamente banal. Han chega a mencionar que as maiores vítimas da perda desse “véu” de beleza, que esconde, que não entrega de uma vez as intimidades, são o “charme” e a “graça”. Ambos são o caminho para o “nu”, mas antes de lá chegarem, fazem rodeios, brincam, ironizam, jogam com uma imagem que ainda possui significado e poesia. No tempo presente não há tempo para tantos rodeios. Likes à direita, dislikes à esquerda. A primeira pessoa que lhe chamar será avaliada por meia dúzia de fotos e algumas poucas linhas de texto, sendo uma delas a mais importante: o seu @ no Instagram.

 

A diversidade de aplicativos de relacionamento / Fonte: Mundo Raiam

 

“A mídia digital realiza uma inversão icônica, que faz com que as imagens pareçam mais vivas, mais bonitas e melhores do que a realidade deficiente percebida.” (HAN, 2018, p. 53). Em “No Enxame” (2018), Han parece mergulhar de cabeça nas contradições do mundo digital. A frase acima poderia muito bem ter sido cunhada pelo filósofo coreano após uma “rolada no feed”[6] de alguma rede social de alta exposição dos usuários. Essas imagens são meras representações, nas quais nos refugiamos para fugir do enfrentamento do mundo real. Elas passam a ser objeto de consumo e são domesticadas ao gosto de uma sociedade narcisista e individualista. Esses dois últimos aspectos parecem reacender a chama do neoliberalismo mencionado: nesse mundo de roupagem mais livre também nos sentimos mais sozinhos. Quando nos é colocado que só depende de nosso desempenho para conseguir o que queremos, os afetos parecem cada vez mais distantes. Para além do elemento exclusivamente sexual, é nesse contexto que o desespero pela resolução amorosa pode vir a aparecer: a carência, dizem as más línguas. 

Os gregos usavam mais de uma palavra para designar amor que, convenhamos, é uma ideia ampla o suficiente para receber várias nomeações. Eros era uma delas, e é daí que vem a palavra erótico. Contudo, para os antigos, a palavra extrapolava muito o sentido sexual. Eros podia se traduzir em paixão, desejo e havia quem dissesse que é doença, passível de remédio para a cura. Cabe reparar que Eros termina no instante seguinte que a paixão se concretiza; quando o espaço é preenchido. O fim da busca, quase sempre, é o fim de Eros. O amor, nesse caso, só se sustenta na possibilidade de não ter mais o outro. Hoje, lidar com a angústia desse amor que falta parece cada vez mais impossível. Como num quadro de Hopper[7], nos vemos entregues a uma modernidade isolacionista, incapaz de perceber a dor da perda, quase sempre focada na insaciedade do próximo envolvimento afetivo. “Compararmos tudo com tudo, nivelamos tudo ao igual e desgastamos a ideia do outro. No Eros, não é possível nos centrar em nós mesmos e em nossas expectativas, mas sim no outro, na diferença da negatividade.” (REINHARDT, 2020).

Automat (1927). Edward Hopper. Óleo sobre tela./Fonte: Arte.Ref 


Notas de rodapé

[1] Nude: palavra que vem da língua inglesa e significa “nu”. Na língua portuguesa é usada para indicar a troca de fotos eróticas incluindo nudez, muito comuns no fenômeno do sexting descrito no texto. 

[2] Eu lírico: O narrador do poema. 

[3] Viagra: O Citrato de sildenafila é um composto químico estimulante vendido na forma de uma pílula de cor azulada que pode se chamar Viagra quando designado para remediar a disfunção erétil no homem. 

[4] Classe Dominante: Para Marx, em um sistema capitalista, a classe dominante é a aquela que controla a força de trabalho e possui os meios de produção (meios físicos como ferramentas usadas no processo de produção). 

[5] Instagram: Rede social criada em 2010 com foco na publicação de fotos. Em 2015 a rede social se popularizou no Brasil impulsionada pela ferramenta chamada de stories, publicações de curta duração de tempo. 

[6] Rolar o Feed: Expressão usada quando se explora uma rede social que apresenta para o usuário as publicações mais recentes daqueles que segue. Era uma expressão cara aos usuários do Facebook e agora é usada para tratar do Instagram. 

[7] Edward Hopper: Pintor norte-americano nascido no final do século XIX que ficou conhecido por traçar um perfil da pós-modernidade em suas telas. Jogando com a escuridão e com o realismo, Hopper retratou a solidão como poucos em seu ofício. 

 

Referências bibliográficas

 APPS de Namoro Crescem na Pandemia. Forbes, 11 de jun. 2021. Disponível em: <https://forbes.com.br/forbes-tech/2021/06/apps-de-namoro-crescem-na-pandemia-conheca-os-7-melhores/>. Acesso em:30 de abr. 2023. 

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Editora Vozes Limitada, 2018.

HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017

QUE dureza. Revista Trip, 26 de jun. 2018. Disponível em: <https://revistatrip.uol.com.br/trip/apos-20-anos-viagra-tornou-se-um-problema-consumido-por-adolescentes-e-adultos-saudaveis>. Acesso em: 01 de mai. 2023.

REINHARDT, J. S. Agonia do Eros e o narcisismo contemporâneo. Signos do Consumo, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 126-128, jul./dez. 2020.

SEXTING é uma expressão da sexualidade na adolescência. Safer Net. Disponível em:  <https://new.safernet.org.br/content/sexting-%C3%A9-uma-express%C3%A3o-da-sexualidade-na-adolesc%C3%AAncia#:~:text=%C3%89%20um%20fen%C3%B4meno%20no%20qual,%2Fou%20amigos(as)>. Acesso em 29 de abr. 2023.

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