Distraído? Acho que nunca me vi tão atento.
Tenho andado distraído demais. Bati com o rosto em obstáculos do meu trajeto diário mais de uma vez nessas últimas semanas. Eu parecia mais preocupado com a música que ouvia ou com alguma distração na rua, um vestido bonito, um transeunte que me lembrasse um conhecido. A verdade é que eu sou cheio das coincidências então as chances não são tão absurdas. Esses dias até esqueci minha própria assinatura. Esqueci também e, agora reparo no meu erro, que comecei esse texto com um pedaço de letra da Legião Urbana. Quero que fique claro: isso não é uma referência ou paródia. Eu não gosto mais de Legião.
Com o passar do tempo eu passei a apreciar as bandas vivas. Talvez tenha deixado pra trás aquela pecha de um amante melancólico do passado cultural do meu país. Ainda bem que foi assim, eu não podia ser tão estúpido por tanto tempo. Nem só de Chico Buarque vive um homem. A banda que mais assisti ao vivo, por exemplo, senhoras e senhores: Maglore. Nunca ouviu falar? Não te culpo, afinal, não é como se eles fossem os Beatles ou algo do tipo - ainda que muito daquilo que eles toquem soe muito como Beatles, o que também não é motivo de julgamento, já que todo o despontar da arte está na cópia do que é bem-sucedido; eu mesmo sou um exemplo, adoro copiar meus grandes trabalhos do passado. Em reverência a eles, eu sou repetitivo boa parte do tempo, até a hora que surja algo novo e seja capaz de substituir o sucesso anterior. Narcísico? Certamente, problema da minha terapeuta.
Agora, o que te acontece quando nada que você cria parece certo? Não falo de textos, do trabalho, da vida particular… Falo das ideias elas mesmas. Parece que no meio de tamanha distração tenho acabado com portadas na cara, infinitas portadas na cara, referentes ao meu descuidado caminhar. Restam os sonhos, a minha própria divagação. Quando nada se realiza na exterioridade prefiro viver minha própria epopeia interna. Cada travessia da linha de metrô é um novo e interminável volume com novos capítulos. Dizem que eu me perco em mim mesmo; eu acho bobagem. Eu queria mesmo era falar de música, perdão, é que eu me perdi.
“Se você fosse minha” é um dos hinos do Maglore. Daqueles que plateias inteiras se comprometem. Daqueles que você agradece estar vivo por ouvir, mesmo que não sejam os Beatles. Só no ano passado assisti a essa performance 3 vezes, cada uma em um pedaço do ano. Ela voltou pra mim no começo de 2023, através de coincidências inquestionavelmente deliciosas. Por sorte a música não é como um quadro. A gente consegue rever a hora que quiser, ainda que performada pelo streaming de música de um celular. Tornei a um desses trajetos debaixo da terra e à medida que as estações passavam fazia mais uma história pra contar pra mim mesmo nas subsequentes horas.
Em sonho eu via a mim mesmo, acordando de um pesadelo. Então me debruçava na banda direita da cama estreita e não me sentia sozinho pois na cadeira da escrivaninha sentava alguém que amava. Não era rosto, não era conhecimento, era apenas vontade. Impulso de vida que não sentia havia anos. E então lá fomos nós após um café passado, de malas arrumadas para nosso próximo destino. Peço agora que coloque as mãos sobre sua cabeça, aquele que lê, peço que pare e pense no quão gostoso é fazer planos. Não falo só dos planos pessoais, aqueles que dizem respeito à nossa rotina, falo de planos feitos com afeto. Planos divididos. Expectativas aplacadas. Comparar casa, fazer família, conhecer gente, escrever a respeito, revelar uma foto em grande estilo, presenciar tudo aquilo que pode vir a ser. Eu já tive medo de fazer planos, só que ali eu não precisava andar em falso, o pesadelo chegara ao fim. A figura sem rosto me trazia nos braços aonde quer que fosse.
Um rolê conhecido, um monte de amigos, todos esses muito bem identificados pela minha cabeça. Devo apresentar a todos quem acompanhou em tantas belas passagens. “Pessoal, quem está ao meu lado é…”. Quem? Não consigo ver, dada a nebulosidade entre seus olhos; se é que tem olhos. Reparei mais de perto que existia um fino véu que cobria sua face. Delicadamente e com ansiedade o retirei diante da plateia atônita. O metrô me olhava a correr com os olhos um tanto marejados antes que a porta automática se fechasse.
Por distração quase perdi a estação e me atrasei para o trabalho. Acordei do meu próprio pesadelo: a real impossibilidade de se amar alguém que não tem nome. Esquecer é ruim, porque aquilo que eu gostei mesmo foi parte da fantasia, tal qual a música do Maglore. “Muito te quero, porque não te tenho”, já que se houvesse um rosto naquela projeção fria provavelmente seria bem menos interessante. Subi as escadas rolantes ainda um pouco zonzo e retirei do meu arsenal de esquerdomacho tropicalista a melhor coisa que encontrei: “A minha alucinação é suportar o dia a dia e o meu delírio é a experiência com coisas reais.”
Cheguei ao topo com aquela luz contra o rosto. O dia amanhecia e a chance de esbarrar no próximo anteparo existente era cada vez menor porque eu já parecia algo mais ligado nas tais “coisas reais”. Nunca vou deixar de lado meu eros coberto de véu, beleza e encantamento. Nunca vou deixar de sonhar no vagão. Eventualmente a gente acorda e tenta dar formato ao mundo, registrar aqueles gestos pequenos copiando as partes mais interessantes até que surja algo novo. Distraído? Acho que nunca me vi tão atento.
Qual é a sua reação?