Esperança de Justiça: novo horizonte feminino
Ao voltarmos nosso olhar para a história do Brasil, encontramos páginas cheias de revoltas, guerras, ditaduras e escravidão. Entretanto, o protagonismo silencioso das mulheres, que alimentaram a alma e o espírito da nação, é uma história raramente contada. Poucas são as heroínas inscritas nos livros como arquitetas do Brasil que hoje conhecemos.
Durante minha jornada acadêmica em Direito, cruzei caminhos com as obras de grandes filósofos e juristas, como Platão, Locke, Montesquieu, Beccaria, Feuerbach, Ferrajoli, Pontes de Miranda, Rui Barbosa, Clóvis Beviláqua, Luís Gama e tantos outros. No entanto, percebi que essa paisagem intelectual carecia de mais diversidade e cor quando se tratava de vozes femininas, que deveriam enriquecer o mosaico com sua sabedoria e experiência.
A contemporaneidade é um enredo de ideias e objetivos entrelaçados, e sua construção deve ser sustentada por um movimento plural, que reúna uma constelação de representantes diversos. Isso significa dar espaço a uma variedade de vozes, pontos de vista e experiências, capturando a vibrante tapeçaria de identidades e culturas de nossa época. É fundamental trazer à luz a jornada das juristas que ajudaram a esculpir as bases do Direito brasileiro.
Figura 1 - Esperança Garcia, a primeira advogada brasileira.
Fonte: OAB-PI, 2017.
Mulher negra e escravizada, Esperança Garcia (1751-s./d.) deixou uma marca indelével na história ao ser reconhecida pela Ordem dos Advogados do Brasil, em 2022, como a primeira advogada do país. No contexto do Brasil colonial, Garcia levantou sua voz em um ato de coragem, escrevendo uma carta ao governador da capitania do Piauí para denunciar os abusos sofridos por ela, suas companheiras e seus filhos na fazenda de Algodões, perto de Oeiras. Sua carta, redigida em 1770, foi um farol de resistência, um gesto ousado em busca de justiça e dignidade, uma chama de esperança acesa em meio à escuridão.
“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.” (GARCIA, 1770; transcrição para o portguês atual: MOTT, 199).
A demora de mais de dois séculos para que Esperança Garcia fosse reconhecida como a primeira advogada brasileira é emblemática, demonstrando a persistente negligência da história oficial em dar voz e espaço a figuras femininas, revelando um viés sistêmico que marginaliza suas realizações. O reconhecimento tardio ressalta a importância de revisitar e reescrever a história com um olhar mais inclusivo, para dar visibilidade àquelas que trabalharam para moldar a sociedade e o Direito brasileiro.
A questão resiste também ao registro das primeiras juristas que assumiram cargos públicos no século passado. Como observa Mônica Sapucaia Machado ao se referir à tese de doutorado de Veridiana Campos, até hoje paira uma névoa de dúvida sobre quem foi a primeira juíza do Brasil. Estudos menos meticulosos apontam para Thereza Grisólia Tang (1922-2009), de Santa Catarina, mas análises mais profundas revelam que Auri Moura Costa (1911-1991) foi a pioneira, tendo assumido o cargo em 1939, no Ceará.
Campos, referenciada por Machado, sugere que Auri pode ter se tornado a primeira magistrada brasileira não pelo reconhecimento de suas habilidades técnicas, mas porque o Judiciário talvez não estivesse ciente de sua condição de mulher: “Registram os historiadores que ela só teria sido nomeada porque foi confundida com um homem, em razão do nome. Foi fruto de um equívoco a nomeação da primeira magistrada” (SAPUCAIA, 2019, p. 148).
O cenário desolador que envolveu a nomeação de Auri Moura Costa ecoou muito além daquela época. A magistratura brasileira se encontrava em uma encruzilhada, ainda distante de alcançar a plenitude de seu potencial feminino. Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha sido criado em 1808, foi apenas após mais de cento e noventa anos que as vozes femininas começaram a deixar sua marca nas cadeiras da mais alta Corte do país, trazendo consigo uma riqueza de diversidade de pensamento.
Em 2000, Ellen Gracie (1948-) foi nomeada para exercer o cargo de Ministra do STF, tornando-se a primeira mulher a compor aquele Tribunal e a presidi-lo. Durante os onze anos que se seguiram, Ellen ergueu uma carreira de notável intelecto e impressionante habilidade jurídica na Corte, destacando o potencial das mulheres no campo das ciências jurídicas.
Figura 2 - Ministra Ellen Gracie, a primeira mulher a compor o STF.
Fonte: Conjur, 2017
Em meio aos intrincados caminhos da História, reverbera o sussurro das mulheres, cujas contribuições muitas vezes relegadas são como fios invisíveis que tecem a trama do Brasil. Seja nos bastidores dos embates sociais, nos corredores do conhecimento ou nos palcos da justiça, sua influência e participação são indeléveis, clamando por um reconhecimento que abarque sua plena importância nos relatos históricos e intelectuais.
Por séculos, os corredores do Conhecimento, as páginas dos livros, os tronos da Justiça e os bastidores do poder traíram Têmis[1]. As mulheres foram relegadas à sombra, enquanto os homens ocupavam o centro do palco no cenário jurídico. Antes, eles; agora, Maria Augusta Saraiva, Myrthes Gomes, Ada Pellegrini, Eunice Prudente, Silvia Pimentel, Zuleika Sucupira, Janaína Dutra, Eliana Calmon, Ellen Gracie, Auri Moura e Esperança.
Nota de rodapé
[1] Têmis, na mitologia grega, representa a justiça, segurando a balança dos destinos humanos e a espada da lei. Sua cegueira simboliza a imparcialidade, julgando todos sem se deixar influenciar por aparências ou preferências pessoais.
Referências bibliográficas
CARTA escrita em português atual. Disponível em: <https://esperancagarcia.org/a-carta/>. Acesso em 10 abr. 2024.
MACHADO, Monica. Direito das mulheres: ensino superior, trabalho e autonomia. São Paulo: Almedina, 2019, p. 148.
Qual é a sua reação?