O Reflexo de Draupadi nas Mulheres Indianas
Fig. 1 - Draupadi no palácio de Virata, por Raja Ravi Varma (1897)
O Mahabharata é um dos dois grandes épicos clássicos da Índia, considerado pelos hindus como um dos textos sagrados e tendo Draupadi como sua personagem feminina mais importante. Essa personagem tem características muito diferentes da maior parte das mulheres representadas no épico – por exemplo, o fato de não ficar calada quando era injustiçada –, porém, ainda assim, carrega muitos aspectos que são essenciais para entender a subjetividade de muitas pessoas no país.
Draupadi era filha de Drupada, rei de Panchala. Era considerada uma mulher linda e, com isso, seu pai organizou uma competição difícil para que um homem ganhasse sua mão. Muitos tentaram, entretanto apenas Arjuna, um dos cinco Pândavas[1], conseguiu não somente passar pelos desafios, mas também conquistar o coração da princesa, que daria a palavra final sobre o casamento. Assim, Draupadi e o novo marido partiram para a casa dele e lá ela conheceu Kunti, sua sogra. A senhora, mãe dos cinco Pândavas, afirmou que o que um de seus filhos tivesse, os outros também teriam que ter, ou seja, Draupadi teria que ter cinco maridos e se dividir a cada ano com um deles, mesmo amando apenas Arjuna. Essa foi uma das primeiras dentre as várias vezes em que ela foi tratada apenas como um objeto e, independente de sua vontade, acabou por realizar o desejo de outras pessoas acima do próprio.
Yudhishthira, o Pândavas mais velho e um dos maridos da princesa, tinha problemas com jogos de aposta e perdeu tudo que tinha numa partida contra Duryodhana, fazendo com que ele e seus irmãos se tornassem escravos. Ele também colocou Draupadi como aposta, que tentou argumentar ao seu próprio favor, sem sucesso. Duryodhana mandou que ela fosse arrastada por Dusshasan até o tribunal e despida na frente de todos, a princesa tentou argumentar, e mesmo vencendo com sua lógica irrefutável nenhum homem se moveu para ajudá-la. Humilhada, voltou-se para o deus Senhor Krishna em saudação, e ele a ajudou tornando o seu sari[2] infinito: cada vez que Dusshasan o puxava, mais tecido aparecia.
Em diferentes situações, Draupadi foi usada como isca ou objeto, e se desdobrou de diversas maneiras para salvar os outros que não se levantaram para ajudá-la. Para os seus maridos, é apenas uma posse que pode ser dividida ou apostada. No Ramayana, ainda que exista o conceito de que não há maior presente para um homem que sua esposa, o uso da palavra “presente” dá a entender que a mulher é apenas um objeto utilizado para proporcionar felicidade para o homem.
Só resta agora a dúvida acerca de como a história de uma mulher da mitologia hindu repercute na subjetividade feminina na Índia atual. É importante ressaltar que o país, segundo a Fundação Thomson Reuters, é considerado o mais perigoso para as mulheres, uma vez que lida com altas taxas de estupros – principalmente pelos maridos –, ataques e abusos de caráter sexual e infanticídios de meninas. Existem algumas partes do país que são mais liberais, no entanto em muitas se espera que as mulheres sejam reservadas e que não trabalhem após o casamento, focando apenas na vida doméstica e em sua família, assim como Draupadi.
As tradições que afetam a vida das mulheres indianas estão sendo cada vez mais discutidas, e as mulheres aos poucos estão conquistando seu espaço. Em 2021, diversos protestos no país foram feitos para criminalizar o estupro no casamento, que acontece em grande parte por causa da crença enraizada de que o consentimento para o sexo está implicito no casamento. A maior parte dos casamentos indianos são arranjados e afetam diretamente a vida das mulheres indianas, fazendo-as deixar o trabalho e abandonar a escola para passar a viver com um marido que conheceram, provavelmente, no dia do próprio casamento e com sua família. O Instituto de Saúde Métrica e Avaliação na Universidade de Washington indicou que a maior causa do suícidio entre as mulheres indianas é o casamento arranjado e os problemas que vêm com ele, como a violência doméstica e a depressão. Isso muitas vezes pode vir em razão da tradição da mulher de mudar-se para a casa dos sogros ao casar, saindo de seu nicho de apoio, sentindo-se sozinhas e muitas vezes tendo que lidar com a violência do marido. Ainda que existam, são poucos os casamentos arranjados bem-sucedidos.
Além do costume do casamento arranjado, há ainda a tradição do dote da mulher, que, mesmo ilegal desde 1961, faz com que os abortos seletivos sejam bastante expressivos, já que ter uma filha mulher pode ser considerado algo ruim. Por conta disso, em 2015, o primeiro-ministro Narendra Modi iniciou um movimento no Twitter chamado #BetiBachaoBetiPadhao (que se traduz como “salvar a filha, educar a filha”), que viralizou e tinha o objetivo de sensibilizar a Índia sobre a questão do abandono de meninas. Cada vez mais, as mulheres indianas lutam para buscar seu espaço e seus direitos na sociedade, e, aos poucos, as leis estão sendo mudadas para transformar o país, em prol de uma maior igualdade de gênero. Apesar disso, é importante entender que os mitos, como o de Draupadi, afetam a maneira como a mulher é vista e como deve se comportar, principalmente diante de um novo século em que muitas questões estão sendo colocadas em jogo para um Estado mais seguro e diferente para as mulheres.
Notas de rodapé
[1] Os Pândavas, heróis do épico indiano Mahabharata, são cinco irmãos nascidos do deus Indra e da rainha Kunti. Arjuna, um dos Pândavas, conquistou Draupadi, filha do rei de Panchala, em uma competição de arco e flecha, tornando-se sua esposa. Essa história é retratada no Mahabharata, um texto fundamental da cultura indiana. Vyasa. Mahabharata. Tradução de J.A. Penna. São Paulo: Editora Pensamento, 2010.
[2] Um sari é uma vestimenta tradicional feminina usada em muitos países do sul da Ásia, incluindo Índia, Bangladesh, Sri Lanka, Nepal, e Paquistão. Consiste em um longo tecido retangular, geralmente de seda, algodão ou outros materiais, que é habilmente enrolado ao redor do corpo, formando uma peça única de vestuário que pode variar em estilo, cor e padrão, dependendo da cultura regional e das preferências individuais. Gupta, Charu. Vestimentas Tradicionais da Índia: Uma Exploração Cultural. Nova Delhi: Editora Lotus, 2018.
Referências bibliográficas
ÍNDIA é o país mais perigoso do mundo para as mulheres. Veja, 17 de dez. 2018. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/india-e-o-pais-mais-perigoso-do-mundo-para-as-mulheres. Acesso em: 07. dez. 2021.
MATOS, Ju. Mahābhārata e a Bhagavad Gītā. Yoga Pranava. Disponível em: https://www.yogapranava.com/post/mah%C4%81bh%C4%81rata-e-a-bhagavad-g%C4%ABt%C4%81. Acesso em: 07 dez. 2021.
PANDEY, Geeta. Mulheres na Índia lutam para criminalizar estupro no casamento. BBC News Brasil, 04 set. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-58406858. Acesso em: 07 dez. 2021.
PARA diminuir o infanticídio feminino na Índia político usa selfies. Catraca Livre, 15 jul. 2015. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/para-diminuir-o-infanticidio-feminino-na-india-politico-usa-selfies/. Acesso em: 07 dez. 2021.
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