A liberdade mora na solitude
Da liberdade ao aprisionamento, ou o contrário? O conceito de “Tornar-se mulher”[1], descrito por Simone de Beauvoir[2], representa para a mulher brasileira um processo que parte de princípios para além de preceitos filosóficos. Desde a infância em que, de repente, não podemos mais usar as camisetas sem sutiã, até a atenção dobrada que precisamos aprender a ter com os homens - sejam eles desconhecidos na rua que olham demais, sejam eles a figura do tio idoso que encosta de maneira estranha em suas sobrinhas. Mas, ainda, mesmo tendo que aprimorar constantemente o policiamento de nossos corpos, somos compelidas a ser simpáticas e adequadas. A maneira empírica de “tornar-se mulher” mostra que cada momento vivenciado carrega, implicitamente, a necessidade de sempre nos transformarmos em uma mulher diferente para sobreviver.
Antes que eu pudesse peneirar as violências já vividas e retirar as duras raízes que estavam escondidas em meio ao pó que esvaiu, tive o privilégio de sair da minha zona de conforto e me permitir agir em prol de um sonho. O que eu não sabia era que dar vida a esse sonho me proporcionaria ao encontro de uma mulher que, até então, não sabia que tinha tanto a ver comigo. Possuía o mesmo cabelo, as mesmas vestes, estatura, as mesmas pintas que costuravam a melanina do corpo. Me perguntava “de onde veio ela? E, por que, de repente, senti que em 18 anos eu não tive a chance de conhecê-la?”. Eu a conheci pelo que viria a descobrir como solitude, e foi o que me acompanhou no trajeto ao ingressar em uma universidade federal para estudar Artes Visuais. Estava a 616 km de minha cidade, da minha família, meus animais, amigos e de tudo o que eu já fui, tudo pelo sonho.
Num dia ensolarado de março, no ano de 2019, numa cidade desconhecida, com pessoas desconhecidas, minha mãe me deixou na porta da faculdade, com um abraço, lágrimas nos olhos e muita pressa, por querer chegar em nossa cidade antes das 22h. Em instantes a vi entrando no carro e indo embora, por mais 616 km à frente. Eu e ela, carregando a incerteza de quando nos veríamos de novo, e mesmo que tomadas pela dor, tínhamos que prosseguir com nossas obrigações, já não havia mais tempo para sentir. Naquele dia conheci a faculdade através da busca por um lugar onde eu pudesse chorar em paz, e, em meio ao medo do desconhecido, fui de encontro com a coragem que estava guardada dentro de mim. Fosse pela solidão, aprendizado ou sobrevivência, novamente teria de me tornar mulher.
O que sucedeu após o sentimento que me assolou em 2019 – este que sugeria que, talvez, eu estivesse por minha conta no mundo – me mostrou os desafios da vida adulta. Digo, não é apenas sobre as tarefas domésticas, a sobrecarga mental em prever tudo, sequer o esforço para encaixar a saúde em uma rotina densa de estudos e trabalho. O principal desafio é dar conta de tudo, o tempo todo.
Uma boa funcionária não se atrasa. Uma boa namorada não se opõe. Uma boa aluna não faz entregas medíocres. Uma boa artista não se expõe tanto. Uma boa dona de casa não esquece de tirar o lixo. Uma boa filha não questiona tanto. Uma boa amiga diz “sim” para todos os favores pedidos. Uma boa mulher não falha. Nossas mães nos ensinam a não receber favores, como sinal de educação. Nossos pais ensinam que o amor é moeda de troca pelo agrado e obediência. Nossas tias e tios ensinam que o afeto vem pelo modo em que nos moldamos às suas expectativas. Lendo frases como essas, por vezes me questionei “como alguém pode pensar assim?”, mas conforme fui crescendo, notei que eu já era parte dessa realidade, assim como inúmeras outras realidades femininas, e nestas, infelizmente, não há o espaço para o erro, para o desagrado, para o perdão.
Demorou muito até eu aprender que falhar faz parte, não só do que sou, mas do que é viver, de fato, para mim, e por mim. Ao longo de meu período na faculdade, passei por um relacionamento abusivo, me senti sem aliados(as) dentro da minha família, lidei com uma rotina em que o tempo era apenas sobre servir a algo ou alguém (esse alguém nunca era eu). Precisei chegar no limite para, enfim, “me dar ao luxo” de tentar me encontrar. Ou melhor, foi na ausência do “eu” que, pela mesma força que carrega “a fúria da beleza do sol”[3], entre os destroços de silenciamento e entrelinhas escritas por homens, senti a obrigação de me buscar. Apenas aquelas que possuem o privilégio da solitude é que possuem a oportunidade de se descobrirem.
O presente ensaio conta sobre a minha experiência enquanto mulher do século XXI, mas poderia ser a história de minha colega de trabalho, de minha mãe com 22 anos, a história da universitária que sempre encontro dormindo no ônibus, de minha vizinha que espera no ponto desde o primeiro horário ou da leitora que passou por todas as linhas até chegar aqui. Não trago acontecimentos de minha vida por serem extraordinários, trago porque são parte da realidade da mulher contemporânea brasileira vivendo em meio a um sistema de dupla jornada e sobrecarga mental. Entretanto, a minha solidão diminuiu todas as vezes que me via na rotineira condução do trajeto entre faculdade, estágio e casa. Via mulheres exaustas, como eu, acordando e fazendo questão de existirem todos os dias e, ainda, mesmo que de modo automático, a empatia com outras mulheres, ou melhor, a sororidade estava presente nos pequenos gestos. Desde uma atenção dobrada para aqueles mesmos homens que olham demais, até o modo em que se oferecem para segurar a mochila pesada da moça de pé no corredor do ônibus. Minha solidão também perdia forças quando eu voltava para as minhas origens. Mães, avós e filhas por muito tempo atravessaram a mesma exaustão e relacionamentos abusivos, mas compreendi que é justamente na dor que reside as semelhanças e a força da união e sobrevivência. Como representa a artista Lara Marques em seu trabalho “Matrioskas” (figura 1), sobreviver enquanto mulher é uma revolução. Em qualquer situação, contemplar e participar da existência de mulheres que sentem, que acordam, que resistem, se mostrou cada vez mais fundamental para que, ao fim do dia, me sentisse minimamente segura e parte de algo.
É difícil fazer uma revolução com corpos cansados, mas certamente é possível realizá-la com mentes sonhadoras, corações que desejam e atitudes que permitem o esperançar feminino.
Fig. 1 - “Matrioskas” (2020)
Fonte: Lara Marques, 2020.
Notas de rodapé
[1] BEAUVOIR, Simone de, “Não se nasce mulher, torna-se”. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
[2] Simone de Beauvoir (1908-1986) foi uma filósofa, ativista, feminista, intelectual, professora e escritora. Suas produções contribuíram e contribuem para o campo dos estudos sobre o feminismo e a luta de igualdade de gênero. Dentre suas principais publicações podemos citar obras como: "Memórias de uma moça bem-comportada" (1958) e "O Segundo Sexo" (1949). Junto disso, Beauvoir se mostrava adepta a teoria existencialista, que visa encontrar o sentido da vida através da liberdade incondicional.
[3] EMICIDA, AmarELO (Sample: Belchior - Sujeito de Sorte). Rio de Janeiro: Laboratório Fantasma: 2019. 5min22seg.
Referências bibliográficas:
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
MARQUES Lara. Matrioskas, 2020. Disponível em: <https://www.behance.net/gallery/119625279/MATRIOSKAS-2020>. Acesso em: mai. 2024.
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