Conhecendo mais de Lygia Pape - Arte e Vida
* O texto abaixo compõe a pesquisa científica “As Interfaces de Lygia Pape: A arte e o design através do espaço” (2023) e foi cedido pela autora para compor a nova edição da Revista Pra Toda Gente.
Arte e vida
Após dissecar as facetas entre obra e espaço, o próximo passo de Lygia Pape pairou sobre a integração da arte e vida de forma sensorial e experimental. Pape traz em sua pesquisa um conceito metafórico relacionado a fita de Moebius:
“Nesse conceito matemático, quando você tem uma fita, inicialmente há sempre um lado de dentro e um lado de fora; mas se você torcer uma das pontas, tornar a ligá-la, e então passar a percorrê-la com o dedo, você não vai mais ter o dentro e o fora. Você vai ter um plano contínuo, o conceito passando de um espaço interno para um espaço externo num movimento deslizante. [...] Introduzi a ideia de arte e vida se misturando, abolindo ou negando o espaço sacralizado da sala de exposição etc., coisas que me mobilizam muito.” (PAPE, 2003, p. 79)
Ao assinar o manifesto Neoconcreto, seus trabalhos começam a discorrer sobre o fim definitivo do suporte e a importância do público como agente ativo para que a obra esteja completa. Além disso, a superação de categorizações das suas obras também se tornou presente nas produções, uma vez que a artista funde diversas linguagens em um único trabalho.
Assim, Lygia inicia uma série de livros e publica o primeiro chamado “Livro da Criação” (1959), elaborado através de uma narrativa não-verbal que contempla a história do mundo e os feitos das sociedades, decifrados somente por formas geométricas manipuladas pelo espectador, criando uma diversidade de interpretações e fazendo do leitor o próprio escritor. Segundo Lygia:
“É bom que se diga que há duas leituras plausíveis: para mim ele é o livro da criação do mundo, mas para outras pessoas pode ser o livro da ‘criação’. Através de suas próprias vivências, um processo de estrutura aberta onde cada estrutura armada desencadeia uma ‘leitura própria’.” (PAPE, 2003, p. 68).
A inserção do público como desenvolvedor cria uma atmosfera experimental ligada ao campo perceptivo, datando a criação do próprio criar e trabalhando a movimentação do interno ao externo.
Em 1960, também realizou o “Livro do Tempo” (1960-61), formado por 365 peças de madeira em relevo derivadas da forma geométrica quadrada, que estimulam a capacidade inventiva de criar uma nova composição a cada dia do ano a partir da mesma base, afirmando a dependência da forma sob o tempo, tanto na sua execução propriamente dita quanto na atuação do espectador em movimentar mentalmente a peça que, por sua vez, se desdobra e volta para a sua forma inicial.
Fig. 1 - “Livro de Criação” (1959). Fig. 2 - “Livro do Tempo” (1960-61).
Fonte: Itaú Cultural Fonte: Artmap
1 - Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra14850/livro-da-criacao. Acesso em: mai. de 2023.
2 - Disponível em: https://artmap.com/k20/exhibition/lygia-pape-2022. Acesso em: mai. de 2023.
Nos anos 60, o golpe militar instaurou uma ditadura no Brasil que durou de abril de 1964 até março de 1985, levando vários artistas a discutirem questões políticas e sociais, que se intensificaram conforme a repressão do regime aumentava.
Neste momento, Lygia voltou-se para a produção cinematográfica do Cinema Novo, e se ausentou de qualquer tipo de mostra artística; até que em 1968, na exposição “Nova Objetividade Brasileira”, no MAM-RJ, ela apresentou suas mais novas obras “Caixa de Baratas” (1967), uma caixa espelhada com baratas mortas enfileiradas, e “Caixa de Formigas” (1967), uma caixa transparente que investiga o caminhar de saúvas na presença de um pedaço de carne crua sob um fundo escrito “a gula ou a luxúria".
Estas obras demonstraram um maior envolvimento de Lygia com questões políticas e culturais, pois nelas existem um forte contraste entre a vida e a morte vinculadas a uma crítica tanto a respeito da mumificação das coleções museológicas quanto a marginalização e banalização da população brasileira em meio às violências que alimentavam a ditadura. “Foi um período difícil, mas extraordinariamente criativo, na música, literatura, cinema, teatro e nas artes plásticas, ampliadas em novas ações como o happening e a performance.” (MATTAR, 2002, p. 38).
Fig. 3 - “Caixa de Baratas” (1967). Fig. 4 - “Caixa de Formigas” (1967).
Fonte: Itaú Cultural Fonte: UFRGS
3 - Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra14846/caixa-de-baratas. Acesso em: mai. de 2023.
4 - Disponível em: https://www.ufrgs.br/arteversa/lygia-pape-experimentacoes-com-arte-e-vida/. Acesso em: mai. de 2023.
Dessa forma, Lygia, que sempre se mostrou aberta para a exploração da mente e do corpo como processo contínuo criativo através da diversidade material, da invenção e da presença imersiva do público, produz a obra “Ovo” (1967), composta por cubos estruturados de madeira e cobertos por películas de plástico que variam entre as cores branca, azul e vermelha, na qual o nascimento em escala sensorial é o protagonista e sua ideia abrange uma expressão diversa, onde qualquer um pode se libertar e renascer. Além disso, o formato quadrado do ovo misturado com o próprio ato de rompimento da película remete ao neoconcretismo, desfazendo-se da geometria e do conceito de “cubo branco”.
Em 1968, fez “Divisor” (1968), um trabalho político no qual diversas fendas abertas em um pano convidam o público a dar vida para a obra que, por sua vez, torna-se uma grande malha ambulatória formada por um único elemento que liga e separa diversos corpos, sintetizando a massificação do homem. E, no mesmo ano, produziu “Roda dos Prazeres” (1968), que explora o lado sensorial por meio de um círculo formado por potes que, em seus interiores, continham líquidos de diversas cores vibrantes e gostos distintos. Assim como em “Ovo” e “Divisor”, o público ativa a obra ao provar destes fluidos coloridos, provocando “[...] uma ambivalência de sentidos: o olho via uma coisa, se encantava com ela e a língua poderia rejeitar. Ou podia até reforçar o que o olho já tinha devorado [...].” (PAPE, 2003, p.74).
Nestas três obras é possível visualizar semelhanças que apontam para onde Lygia Pape estava caminhando com suas produções: o corpo como obra, no qual sua presença se torna um agente ativo para o alcance de sua completude artística; a valorização do caráter sensorial que se interliga com as experiências provenientes do mundo e a tomada de consciência do ser e estar. São obras que questionam sua autoria dada a concretude por meio da inserção do corpo não necessariamente sendo o da artista mas sim, o do público.
Fig. 5 - “Ovo” (1967). Fig. 4 - “Divisor” (1968).
Fonte: Artmap. Fonte: Artmap.
5 - Disponível em: https://artmap.com/k20/exhibition/lygia-pape-2022. Acesso em: mai. de 2023.
6 - Disponível em: https://artmap.com/k20/exhibition/lygia-pape-2022. Acesso em: mai. de 2023.
Ao se ligar com uma nova linguagem de comunicação veiculada a disseminação de massa – o cinema – nos anos 70, Lygia realizou seus próprios curta metragens, construídos tanto de forma documental quanto ficcional: “Guarda-Chuva Vermelho”, “Carnival in Rio”, “Arenas calientes”, “Wampirou”, “Mão do Povo”, “Favela da Maré” e “Our Parents”. Eles expõem sua compreensão sobre tecnologia, preenchendo um novo espaço inerente da vivência humana, interligando estes dois pesos – sociedade e tecnologia – em suas produções cinematográficas, marcando sua própria experiência com e espaço e, principalmente, com o social. Aqui, os meios marginalizados se tornam arte e o contexto cultural não-erudito é fortemente exaltado, pois, para Lygia, o popular é o que há de mais sofisticado no mundo e suas manifestações são combustíveis para as percepções artísticas que a moldam (PAPE, 1998, p. 21).
Em “Our Parents” (1974), Lygia aborda sua pesquisa ligada à ancestralidade através da gravação de bancas de jornal que continham em seu mostruário cartões postais de tribos indígenas. Ao decorrer das cenas é desenvolvida uma narrativa decolonial, na qual as primeiras tomadas apresentam uma visão estereotipada e “selvagem” dessas populações, que, ao longo das imagens, se desconstrói, dando espaço para a forma de vida cotidiana das tribos; apresentando uma crítica a falta de conhecimento da nossa própria ancestralidade – subvertida pelo olhar do europeu – e a exploração da imagem dos povos originários ligada ao “exótico”.
Ainda abordando temáticas relacionadas ao Brasil, Lygia produziu obras como “Wanted” (1974), criticando o regime ditatorial, e “Eat me” (1975), denunciando a imagem da mulher vinculada a objetos de consumo, ocupando primeiro o suporte do filme e depois a instalação, em “EAT me: A Gula ou a Luxúria”. Ambos os trabalhos manifestam visões políticas e sociais, expondo a sociedade e o momento em que a artista estava inserida, de modo que evidenciam problemas que eram continuamente silenciados.
Já no filme “Favela da Maré” (1982) é registrado diversas cenas da comunidade através do próprio olhar da artista, que transita entre o espaço, salientando uma proximidade com o próprio meio. Os ângulos inéditos escolhidos pela artista, trazem um ponto de vista distinto da favela, e jamais apresentado antes, em que ela ressignifica o lugar “favela” e explora sua arquitetura e cotidiano, além de puxar o espectador para uma experiência imersiva ligada aos sentidos que caminham para a sensação de pertencimento.
Nos anos 90, Pape cria a série “Amazoninos” (1989-92), exposta na exposição coletiva “Arqueos” (1990), em que resgata sua pesquisa realizada em seus trabalhos iniciais sobre a geometria pura, através de figuras abstratas que se deslocam da parede, remetendo à flora amazônica e mencionando as marcas deixadas pelo genócidio colonial.
Fig. 7 - “Amazoninos” (s/d).
Fonte: Hauser & Wirth.
7 - Disponível em: https://www.hauserwirth.com/hauser-wirth-exhibitions/21873-lygia-pape-2/. Acesso em: mai. de 2023.
Para mais, a narrativa decolonial e os problemas em torno das vivências dos povos originários, transparecem para outras criações da artista, como na série “Tupinambá” (1996-2000), em que apresenta questões sobre o roubo das terras indígena, por meio de plumas vermelhas que dominam objetos cotidianos ou como na fotografia “Manto Tupinambá” (1996-1999), em que uma nuvem vermelha sobrepõe a cidade do Rio de Janeiro, reivindicando o espaço e tomando o controle que lhes pertencia. Em uma entrevista com Lúcia Carneiro e Ileana Pradilla, Lygia afirmou que ao se tratar da abstração indígena, a imagem é observada por uma ótica europeizada que a enxerga como uma pura abstração, sem qualquer tipo de relação com o mundo, mas, na realidade, abrange em sua economia formal um sentido cultural próprio. Isso se dá pela captura e destruição da cultura, advindas das explorações europeias em terras indígenas (PAPE, 1998, p.18).
Fig. 8 - “Memória Tupinambá” (2000). Fig. 9 - “Manto Tupinambá” (s/d).
Fonte: Dasartes. Fonte: Dasartes.
8 - Disponível em:https://dasartes.com.br/materias/lygia-pape/. Acesso em: mai. de 2023.
9 - Disponível em: https://dasartes.com.br/materias/lygia-/. Acesso em: mai. de 2023.
Em contrapartida, as obras de Lygia Pape que possuem um maior conhecimento público são as “Ttéias”, instalações que articulam geometricamente sobre o espaço, causando um tipo de desconstrução reconstruída a partir do momento em que os fios ligados do teto até o chão quebram com a forma inicial do espaço, reconfigurando e intervindo no andar do próprio espectador. As linhas por si só despertam este novo trilhar, que desenvolve volumes sutis por toda a área.
Segundo Fernando Cocchiarale, é possível fazer uma comparação entre “Ttéia 1C” (2002) com uma de suas séries realizadas no período concreto: “Tecelares” (1957-58), pela similaridade da disposição geométrica: “Os veios da madeira da matriz, a disposição em diagonal dos grafismos, os vazios e os cheios que se interpenetram, tudo nestas xilogravuras pode ser relacionado às Ttéias, como se ambas balizassem os limites de uma longa caminhada.” (COCCHIARALE, 2004).
Fig. 10 - “Ttéia 1C” (2002). Fig. 11 - “Tecelar” (1975).
Fonte: Laart. Fonte: Itaú Cultural.
10 - Disponível em: https://laart.art.br/blog/lygia-pape/. Acesso em: mai. de 2023.
11 - Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra32645/tecelares. Acesso em: mai. de 2023.
Além disso, “Tecelares” possui um forte contraste com o pensamento artístico da época, visto que se trata de uma construção mais artesanal – a xilogravura – que se aproxima das artes manuais e mais popularizadas, como as gravuras de cordel, e deixa perceptivo os veios únicos do material utilizado. Pondo em evidência o fazer humano em oposição ao mecânico, no qual, mesmo se tratando de formas geometrizadas, deixa claro seu forte interesse pela cultura popular.
Cocchiarale afirma ainda que diante de todas as obras feitas por Lygia Pape existe um caminhar gradativo direcionado para uma aproximação com a vida através da temporalidade, marcada pelo seu fluxo, e da brasilidade, como narrativa. Em suas palavras, o tempo se manifesta como o verdadeiro fluxo tanto das obras quanto das experiências como artista:
“É sobretudo um fluxo real: fluxo de partes que se desdobram no tempo (Livro da Criação, Ballets, por exemplo), fluxo de ações performativas (O Ovo) e da participação do público (Roda dos Prazeres, Divisor), fluxo da história e memória brasileiras, e, finalmente o fluxo da própria experiência da artista, que vem sendo marcada pela constante transformação dos meios e dos resultados da sua produção.” (COCCHIARALE, 2004).
Fluxo este que sempre esteve ao lado de Lygia e que ganhou um maior significado a partir dos seus estudos sobre o filósofo Heráclito, tornando-a o próprio fluxo artístico brasileiro que explorava os cantos de Rio de Janeiro intervindo, interligando diversas esferas e criando um campo de atuação ambivalente nas percepções coletivas e individuais diante de um espaço e por entre o povo brasileiro.
Referências bibliográficas
AMARAL, Aracy. Projeto construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: MAM, São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1997.
ARAÚJO, Leonardo. Os Espaços Imantados - a edição brasileira e um possível “corpo coletivo”. Ateliê 397, 2012. Disponível em: https://atelie397.com/os-espacos-imantados-edicao-brasileira-e-um-possivel-corpo-coletivo/. Acesso em: 23 de abr. de 2023.
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Cosac & Naify, 1999. Espaço da arte brasileira.
COCCHIARALE, Fernando; GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos cinquenta. Comentário Waldemar Cordeiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1987. Temas e debates, 5.
COCCHIARALE, Fernando. Entre o olho e o espírito. Lygia Pape. Disponível em: https://lygiapape.com/artista/. Acesso em: 30 de nov. de 2023.
MATTAR, Denise. Lygia Pape - Intrinsecamente Anarquista. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2003
PAPE, Lygia. Lygia Pape - Entrevista a Lúcia Carneiro e Ileana Pradilla. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. Coleção Palavra do artista
RODRIGUES, Viviane. Neoconcretismo e design: A programação visual de Lygia Pape para o Cinema Novo, na década de 1960. 2009. Dissertação (Mestrado em Design) - PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2009.
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