Início da Institucionalização da Arte no Brasil
* O texto abaixo compõe a pesquisa científica “Apagamentos de Gêneros no Ensino Superior de Artes Visuais no Brasil” (2023) e foi cedido pela autora para compor a nova edição da Revista Pra Toda Gente .
Marcada pela pluralidade cultural, a arte brasileira tem raízes na Pré-História e é composta por uma série de fenômenos artísticos, percorrendo expressões de povos originários, linguagens trazidas por europeus, resistências de escravizados e manifestações ocasionadas pela miscigenação. No entanto, apesar da diversidade, a colonização voltou exclusivos olhares para o exterior, dando ênfase às produções estrangeiras. Com isso, a partir do século XIX, iniciou-se o processo de institucionalização da arte.
Após o período Napoleônico, um grupo de franceses, compostos principalmente por artistas e artesãos, partiu para o Brasil sob a liderança de Joachim Lebreton (1760-1819), antigo secretário da classe de Belas Artes do Instituto da França. Fugindo do desemprego e de repressões políticas, buscaram refúgio, desembarcando no dia 26 de março de 1816 na Baía de Guanabara, com a proposta de organizar um ensino artístico. Na época, a Coroa de Portugal já estava fixada no Rio de Janeiro e Dom João VI aceitou recebê-los por desejar que trouxessem conhecimentos provindos da Europa. Entretanto, isso ocasionou um primordial impasse, já que brasileiros e portugueses radicados os olhavam como “intrusos”.
Havia outra questão, ligada aos próprios movimentos artísticos que permeavam as criações externas e nacionais. Enquanto no Brasil se construía um Barroco único, marcado pela junção de culturas, os franceses se prendiam ao Neoclássico, influenciados por ideais clássicos, julgando os trabalhos locais como defasados e em decadência. Dessa maneira, contrários ao repertório nacional, a Missão Artística Francesa fundou em 13 de agosto de 1816 o Liceu de Artes e Ofícios.
Inicialmente, foi nomeado como Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios. No entanto, a nomenclatura se alterou sucessivamente para: Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, Academia das Artes, Academia Imperial das Belas Artes e, em 1826, fixou-se como Imperial Academia e Escola de Belas Artes. Sem inovações estilísticas, ensinavam métodos neoclassicistas, baseados em um antigo sistema de aprendizagem, constituído por oficinas que foram adaptadas às circunstâncias e limitações do meio. Esse processo, afirmado pelos franceses como fim da arte empírica e início da fase metodológica no Brasil, pode ser compreendido como um colonialismo cultural, já que houve um gradativo apagamento da cultura local para substituí-la por produções europeizadas, reforçando domínios imperialistas.
Fig. 1 - Academia Imperial e Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, projetado por Grandjean de Montigny, e aquarelado por Jean-Baptiste Debret (1839)
Fonte: Biblioteca Nacional (https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/17446/academie-imperiale-des-beaux-arts-de-rio-de-janeiro-ouverte-a-l-etude-le-15-novembre-1826)
Além disso, o espaço acadêmico foi fundado não apenas por homens cisgêneros, brancos e de alto poder aquisitivo, mas exclusivamente para eles, mantendo esta realidade por cerca de seis décadas. Somente em 1881, inauguraram aulas para o sexo feminino, no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Era uma educação técnica, voltada para um público mais humilde e com a intenção inclinada para formação de artesãs. Mais de dez anos depois, em 1892, mulheres começaram a ser oficialmente aceitas na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Entretanto, muitas optaram pelo livre ingresso, porque a matrícula oficial exigia exames de admissão sobre conhecimentos que a maioria não tinha (como francês, álgebra e história), devido ao pouco acesso ao ensino secundário, que também não costumava aceitá-las. Em academias particulares, essa ingressão ocorreu antes, porém cobravam altos valores, equivalente ao dobro do que homens pagavam, acrescentado ao fato de que a maioria vinha de ricas famílias e tinha parentesco com artistas.
Até 1895, na Belas Artes do Rio de Janeiro, as classes não eram divididas por gênero, contrariando a lei do Decreto 115, Artigo 187, que assegurava a proibição de turmas mistas. Em 1896, um ateliê de modelo vivo foi criado exclusivamente para as mulheres. No entanto, como consequência, houve resistência à inscrição, pois a prática delas observarem corpos despidos era socialmente malvista, tendo, até a virada do século, só duas estudantes, que posteriormente foram aspirantes a escultoras: Julieta França e Nicole Vaz de Assis. Durante um longo período, formaram-se artistas que não precisavam representar corpos, como miniaturistas, pintoras de natureza-morta, de retratos e de porcelanas. Nesta época, a arte histórica era mais valorizada, mas não podiam reproduzir por não possuírem noções anatômicas, sendo desvalorizadas e sofrendo repressões de críticos.
É relevante destacar que, desde a fundação da instituição, fortes reprovações foram feitas, dando enfoque a rigidez do sistema, distanciamento da cultura brasileira e falta de originalidade por copiarem mestres franceses. Em 1889, com a Proclamação da República, a Academia Imperial foi convertida em Escola Nacional de Belas Artes. Somado às polêmicas e problemas administrativos, sucedeu a flexibilização de exigências técnicas, admitindo a participação feminina. Em 1931, com a reformulação do Ensino Superior, a Escola foi absorvida pela UFRJ. E, assim, foi marcado o fim do Academicismo no Brasil, dando início a um novo sistema, caracterizado por princípios modernos que criticavam modelos anteriores.
Com o Modernismo e o enfraquecimento das academias, diversas minorias passaram a produzir mais arte e explorar novas formas e temáticas, ganhando gradativamente maior visibilidade e ocupando espaços importantes, embora seguissem enfrentando preconceitos.
Referências bibliográficas
CAVALCANTI SIMIONI, A. P. O corpo inacessível: as mulheres e o ensino artístico nas academias do século XIX. ArtCultura, [S. l.], v. 9, n. 14, 2008.
LEITE, José. Missão Artística Francesa. CD-Rom 500 anos da Pintura Brasileira – Uma enciclopédia interativa. São Paulo: Log On Informática Ltda., 1999.
MARTINS, Antonio. Ensino Superior no Brasil: da descoberta aos dias atuais. Acta Cirúrgica Brasileira, v. 17, n. supl. 3, 2002, p. 4-6.
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