Um resgate mais que necessário para a história do cinema
Figura 1 - Cena do documentário “Alice Guy-Blaché: a história não contada da primeira cineasta do mundo” (2020).
Fonte: Be Natural Productions, 2020.
Não é novidade a desigualdade vivida por nós mulheres ao longo da história da humanidade, principalmente naquilo que deveria ser nosso direito básico: saúde, segurança, educação e trabalho. O abismo é ainda maior quando fazemos um recorte interseccional, ou seja, olhamos para a situação da desigualdade das mulheres considerando aspectos de identidade sociais e culturais como: raça, classe, orientação sexual, religião, idade, entre outros. E penso que essa desigualdade se torna ainda mais cruel quando também lembramos de todas as mulheres que tiveram suas jornadas, conquistas e contribuições diminuídas, alteradas, senão apagadas da história.
Faça um rápido teste: você consegue citar ao menos duas filósofas da Grécia Antiga? Ou talvez três grandes pintoras da Renascença? Ou ainda algumas escritoras do século XVIII? Não se preocupe se você não tiver se lembrado de muitas. Mas vamos refletir: o que isso quer dizer? Que não havia mulheres participando de variadas atividades? Ou que não havia interesse por parte delas de participar do mundo da arte e de outras áreas diversas? Ou, na verdade, apenas foram impedidas?
É fato que durante muitos anos, em muitas sociedades, o papel da mulher sempre foi pré-estabelecido e se baseava resumidamente no casamento e na geração de filhos. Buscar algo além disso não lhes era permitido. Mulheres de classe alta, eram ensinadas a algumas práticas artísticas e manuais, como a música e a costura, pois eram consideradas atividades tipicamente femininas e domésticas. Em outros casos, a arte até fazia parte do dia a dia e da profissão de algumas delas, como atrizes e cantoras, mas que por trabalharem e frequentarem ambientes artísticos não eram consideradas mulheres de respeito.
Mas isso não impediu a luta, que perdura até hoje, pela ocupação e reconhecimento de um espaço que também é nosso. Aliás, fazendo uma rápida busca no seu navegador sobre quem foram as mulheres que fizeram parte da história da arte, você vai se deparar com nomes e rostos que não aprendeu na escola, não viu na televisão e que provavelmente não foram homenageados em grandes premiações. Vai descobrir mulheres de toda parte do mundo que agregaram e muito para formação de obras que conhecemos e amamos hoje. E, neste artigo, eu gostaria de contar um pedacinho da história de uma dessas grandes mulheres.
Nasce uma cineasta
Em 1º de julho de 1873, nasceu na França aquela que viria a ser a “mãe” da sétima arte[1]. Quando adulta Alice Guy-Blaché (1873-1968) trabalhou como secretária no estúdio de Léon Gaumont (1864-1946), outro grande pioneiro da indústria, e foi convidada, junto dele, a participar da exposição dos irmãos Lumière no Grand Café em Paris, em dezembro de 1895. O que Alice presenciou naquela exposição, a tecnologia e todas as possibilidades que chegavam com ela, a despertou para o que se tornaria sua grande paixão. Não demorou, então, para que Alice experimentasse por si mesma a magia da produção cinematográfica. Depois de conseguir um cinematógrafo[2], disponibilizado por Gaumont, Alice deu início à produção do seu primeiro curta-metragem. “A Fada do Repolho” (1896) foi lançado apenas alguns meses depois da exposição dos irmãos Lumière, quando Alice tinha apenas 23 anos, e foi o primeiro filme da história com uma narrativa ficcional. Mas ela não parou por aí.
Alice também foi a primeira a sincronizar imagem e som em filme utilizando o Chronophone[2], coloriu frames manualmente e foi a verdadeira precursora do uso do close-up[3], assim como muitas outras técnicas que foram se popularizando. Além disso, trazia em suas narrativas ideias bem a frente de seu tempo, escrevia histórias com protagonistas fortes que questionavam as estruturas preconceituosas e engessadas da época, como em “As Consequências do Feminismo” (1906). Também foi a responsavél pelo primeiro filme composto apenas por atores negros, “A Fool and His Money” (1912) (CAMPOS, 2021).
Durante 10 anos, Alice ficou à frente do estúdio de Léon Gaumont como chefe de produção. Em 1910, três anos depois de seu casamento com o diretor Herbert Blaché (1882-1953), o casal fundou o maior estúdio de cinema antes de Hollywood: a Solax Film Corporation. Ao longo de sua vida, Alice teve mais de mil produções que dirigiu, escreveu e/ou atuou, mas apenas pouco mais de trezentos desses registros foram preservados e sobreviveram ao tempo.
Mesmo com tantas contribuições, a presença de Alice foi apagada da história do cinema, e apenas foi trazida de volta graças ao trabalho da historiadora Alison McMahan (1960-atualmente), junto da Comissão de Cinema de Fort Lee, que desde o início dos anos 2000, trabalharam para criar uma das únicas fontes de registro histórico dedicada ao papel Alice, o livro “Alice Guy Blache: Lost Visionary of the Cinema” (2003) (MACHADO, 2018, p. 7). E, mais recentemente, a diretora Pamela B. Green (1985-atualmente) lançou um documentário que conta a história dessa grande mulher, “Be Natural: A História Não Contada da Primeira Cineasta do Mundo” (2020). O documentário traz imagens de arquivo e entrevistas com atores e outros grandes nomes do cinema, relembra algumas das obras da cineasta e explora o motivo pelo qual a grande artista “caiu no esquecimento”. Para aqueles que se interessarem: pude localizar três obras de Alice disponíveis no streaming da MUBI, sendo elas: “O Cair das Folhas“ (1912), “A Garota na Poltrona” (1912) e “A Órfã do Oceano” (1916). Existe também uma playlist no YouTube, com alguns de seus curtas, basta procurar pelo nome do cineasta.
É totalmente diferente assistir a suas obras quando sabemos que elas são verdadeiras relíquias do cinema, filmes que desbravaram a indústria para que os filmes que amamos hoje pudessem existir.
Conhecer a história da Alice me fez enxergar o quão pouco, a maioria de nós, sabe sobre a história, principalmente ao se tratar do ponto de vista das mulheres. O quão facilmente uma mulher pode ser esquecida e destituída de suas conquistas através do apagamento e quão importante é mudar essa realidade. Faço um apelo para que busquemos, como um coletivo, resgatar mais histórias como a de Alice. Resgatemos cada uma de nossas irmãs privadas de seu devido reconhecimento, que elas se tornem inspiração e apoio para nós e para todas as mulheres que ainda virão.
Notas de rodapé
[1] O termo “sétima arte”, usado para designar o cinema, foi estabelecido por Ricciotto Canudo no “Manifesto das Sete Artes”, criado em 1912 e publicado em 1923. A ideia de numerar as artes veio somente como uma forma simples de designar as diferentes manifestações artísticas.
[2] Desenvolvido pelos irmãos franceses Auguste e Louis Lumière, o cinematógrafo era uma máquina a manivela que permitia captar as imagens, revelar o filme e, depois, também projetá-lo em uma tela. Era portátil (pesava menos de 5 kg) e não usava eletricidade.
[3] Dentro do audiovisual se trata de um tipo de plano, caracterizado pelo seu enquadramento fechado, mostrando apenas uma parte do objeto ou assunto filmado - em geral o rosto de uma pessoa.
Referências bibliográficas
CAMPOS, Vitória. Descubra a história esquecida de Alice Guy-Blaché, pioneira do cinema. Rollingstone.uol.com.br, 8 de mar. 2023. Disponível em: <https://rollingstone.uol.com.br/noticia/descubra-historia-esquecida-de-alice-guy-blache-pioneira-do-cinema/>. Acesso em: 17 de abr. 2024.
COPPE, Anna Carolina; XAVANTE, Clara ‘Rewai’õ Idioriê; RAMOS, Felippe Augusto; PEÇANHA, Victória; FERREIRA, Ceiça. Exposição mulheres pioneiras do cinema. 11ªSAU UEG e 1ºEECBC - Encontro das Escolas de Cinema e Audiovisual do Brasil Central. , [s. l.], ano 2022, v. 9, ed. 1, 20 de jul. 2020. Disponível em: <https://www.anais.ueg.br/index.php/sau/article/view/15255>. Acesso em: 18 de abr. 2024.
MACHADO, S. de S. Uma Outra História: a “esquecida” nação do Cinema das Mulheres. História Revista, Goiânia, v. 23, n. 1, p. 4–27, 2018. DOI: 10.5216/hr.v23i1.51438. Disponível em: <https://revistas.ufg.br/historia/article/view/51438>. Acesso em: 22 de abr. 2024.
Qual é a sua reação?