“Por quê ler ficção?”: o Corcunda de Notre Dame e a preservação do patrimônio público

Fernanda Maciel de Souza Aranha, 30 de jun. de 2023

Eu, leitora assídua, frequentemente sou indagada sobre minha preferência literária. E, pensando em escrever aqui, optei por trazer um olhar mais envolvente quanto às ficções. Ao invés de passar linhas e linhas tentando convencê-los do quão interessante e importante é a leitura de ficcionais, resolvi apresentá-los a um livro que, ao narrar um romance conflituoso retratado numa Paris gótica, foi capaz de transformar uma das obras arquitetônicas mais famosas do mundo.

A catedral de Notre-Dame,  ponto turístico muito visitado da capital francesa, em 2019, sofreu um incêndio de grandes proporções que acabou levando ao desabamento da torre central e do teto. O ocorrido, ao ser transmitido em escala mundial, impactou não somente milhares de espectadores, mas, sobretudo, os parisienses, que, diante das chamas, emocionaram-se e entoaram a Ave Maria, em sinal de respeito ao monumento.  

  Homem assiste ao incêndio de Notre-Dame, 2019/Foto: Geoffroy Van Der Hasselt/AFP.

 

Apesar do apreço que os franceses demonstraram nesse momento de apuros, se o episódio tivesse acontecido há pouco menos de duzentos anos, a reação do público teria sido diametralmente oposta. Falo da época em que o lugar não recebia a devida importância cultural e arquitetônica; quando suas estruturas refletiam o desleixo e o descaso a que estava reduzida.

O monumento começou a ser construído em 1163, no reinado de Carlos Magno, e foi terminado em 1345. A partir de então, em seu entorno, passaram a acontecer feiras livres, negócios comerciais, execuções públicas, festas populares; era ao redor da Catedral que a vida parisiense tomava forma. Mas, ao longo dos séculos e das mudanças sociais no país, a catedral foi saqueada e incendiada, principalmente durante o reinado de Luís XIV e a Revolução Francesa.

Ilustração de Gustave Brion para a edição de 1865. Fonte: www.gallica.bnf.fr

 

A denúncia de seu precário estado de conservação culminou em um dos maiores clássicos da literatura: "O Corcunda de Notre-Dame", romance publicado em 1831. Por meio da ficção, o autor Victor Hugo conseguiu um feito histórico ao povo francês e à cultura ocidental: a reforma de Notre Dame e, posteriormente, o seu devido reconhecimento e valorização.

“Sem dúvida ainda hoje é um edifício sublime, a igreja de Notre Dame de Paris. Porém, por mais bela que se conserve na velhice, é difícil não suspirar, não se indignar diante das degradações e inúmeras mutilações pelas quais simultaneamente o tempo e os homens fizeram o venerado monumento passar, sem respeitar Carlos Magno, quem assentou a primeira pedra, nem Filipe Augusto, quem assentou a última.” [1]

Para mostrar a importância e a beleza original de Notre Dame, o escritor resolveu redigir um romance de resgate histórico, cuja narrativa passa-se em 1482 e tem como protagonista a própria catedral, que representava o ponto de destaque e de referência espiritual da cidade. Inclusive, nas primeiras edições, o livro foi lançado sob o nome “Notre Dame de Paris”. As relações travadas entre Quasímodo, Esmeralda, Frollo e Phoebus, os personagens principais, foram ambientalizadas tanto na parte interna como na área externa. A pretensão de Victor Hugo era conquistar o leitor, ao evocar uma Notre-Dame viva, histórica e participante do cotidiano parisiense, sendo uma “página não somente da história do país, mas também da história da ciência e da arte.”

Embora não tenha sido bem recepcionado pela crítica da época, o livro conquistou aquilo que almejava: a compreensão de Notre-Dame como um monumento representativo do povo francês, da arquitetura ocidental. Assim, em 1844, iniciou-se a restauração que somente foi finalizada em 1864.

Utilizada como um instrumento de transformação, de denúncia social, a ficção destaca a necessidade da preservação do patrimônio público como forma de manutenção da história de um povo. A história imaginária logrou concretizar a valorização de Notre-Dame, a recuperação de sua importância e, séculos depois, o seu reconhecimento como Patrimônio Mundial da UNESCO.

Quando me perguntam, então, o porquê de ler ficção, eu respondo que esse tipo de narrativa nos expõe a cenários recheados de histórias e desejos que, se bem compreendidos, têm o poder de transformar nossos olhares e nosso entorno.

 

Nota de rodapé

[1] HUGO, Victor. O corcunda de Notre Dame: edição comentada e ilustrada. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 123.

 

Referências bibliográficas

HUGO, Victor. O corcunda de Notre Dame: edição comentada e ilustrada. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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